A remodelação: teoria e prática


Remodelações há muitas, mais as impostas do que as desejadas e menos ainda as pensadas friamente


A teoria da remodelação tem ensinamentos claros. A remodelação deve ser feita pelo primeiro-ministro, assumida como decisão individual, não pode ser imposta pela opinião publicada, por uma fronda, por uma tendência dentro do partido do governo ou sequer por um remodelável que pré-anuncie a partida. O tempo da remodelação é o do PM, não o da comunicação social (longe vão os tempos das remodelações à quinta-feira porque “O Independente” saía à sexta), nem o da indignação popular ou o dos protestos corporativos. A surpresa é a alma do negócio, não só para garantir que os putativos remodelados não se rebelam (o denominado efeito Arcanjo) como para evitar que surjam à porta da residência oficial ministros queixosos em relação aos ajudantes mal-agradecidos, transformando uma remodelação pontual e minimalista numa remodelação estrutural.

A remodelação deve trazer um capital de esperança, pelo que melhor será convidar desconhecidos do que pessoal com provas dadas de mau fazer. Há que evitar que os candidatos a novos entrantes falem da putativa entrada. É tentador seguir o modelo de Cavaco, que convidava gente para os seus governos sem lhes dizer para que pastas. O ciclo orçamental também desempenha um papel importante. Nada melhor do que remodelar depois de apresentado o Orçamento do Estado. Os novos governantes ficarão jungidos ao negociado pelos anteriores, cevando a ambição despesista até ao próximo Orçamento. O manual de bem fazer remodelações também ensina a separar a acção do governo dos dramas eleitorais vários, desde as eleições para o Parlamento Europeu às regionais ou às autárquicas. E este é o exemplo perfeito de um dos mandamentos do comentário futebolístico: na prática, a teoria é outra.

E a prática política tem, nos tempos actuais, alguns elementos interessantes. Chegado o Verão, o subsídio de férias, os festivais e o dolce far niente, qualquer PM assobia para o lado e conta os dias até à chegada de Agosto, o mês em que nada acontece, muito menos a remodelação. Mas nem sempre a realidade se revela sensata e, se os factos puros e duros continuarem a repetir-se à velocidade das três últimas semanas, não há calendário estival que resista. Em caso de remodelação, a curto ou médio prazo será mais fácil recrutar, agora que a esperança de vida do governo coincide com a da legislatura, nova gente. Recrutar nos universos que sustentam o governo, seja o Bloco ou o PCP (nem que seja junto dos arrependidos e tresmalhados, como fez Guterres), mas também junto do marcelismo, esse partido de um homem que sempre se quis só e que, ao longo dos tempos, tanto fez por isso.

Manter-se-á à tradição consagrada por Salazar de recrutamento dos governantes junto das universidades, um suposto atestado de competência técnica e uma tentativa de garantia de fidelidade política ao PM, ainda que a gratidão seja a virtude da véspera. O sector privado continuará a preferir telefonar os recados ao governo em vez de participar directamente na gestão da coisa pública. O regresso de estrangeirados, ou de meros expatriados económicos, pode conferir uma dimensão de renovação sempre bem vista numa Lusitânia cuja baixa auto-estima se alimenta dos elogios vindos do estrangeiro.

Aguarda-se a eventual passagem à piscina dos crescidos de um conjunto de dirigentes socialistas que, dentro e fora do xxi Governo, não escondem tal ambição. António Costa é mais ousado do que os dois anteriores PM socialistas, que nunca promoveram um único “mais novo” à categoria dos que, por direito próprio e prerrogativa constitucional, se sentam à mesa do Conselho de Ministros. Tempus fugit, “os mais novos” vão deixando de o ser.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990