Amália Rodrigues nasceu com as cerejas há 97 anos (e uns dias)

Amália Rodrigues nasceu com as cerejas há 97 anos (e uns dias)


Fez no primeiro deste mês 97 anos desde o nascimento da figura maior da cultura portuguesa do século XX, referência e símbolo da portugalidade, fadista de voz irretorquível no mundo quase inteiro que percorreu, Amália Rodrigues 


O Fado como condão. Começou por ser uma cantiga que, trazida pela grafonola do Bairro de Alcântara, lhe entrava pela porta, e acabou por converter-se numa forma de vida – estranha forma de vida, registaria retrospectivamente, onde se achou a representar um papel soprado por um estranho ponto chamado Destino.

Figura maior da cultura portuguesa do século XX, referência e símbolo da portugalidade, fadista de voz irretorquível no mundo quase inteiro que percorreu, Amália Rodrigues ergueu-se acima da sua condição social de origem, que talhava destinos por medida escassa e rígida. Menina frágil «qual ave de penas» – assim a qualificava em 1954 o jornal A Voz de Portugal – aliou o poderio da voz divina ao voo agudo da intuição interpretativa e rapidamente ascendeu a um lugar de proeminência nas artes do espectáculo mundial.

Incontestável «rainha do fado», que com ela galgou muros históricos e geográficos, «imperadora das ondas hertzianas», a difundirem os discos que a partir de 1952 começa a gravar para a Valentim de Carvalho, estrela consagrada do palco e da tela, sucedia-se a si própria. Na sua majestade sombria, imperou por mais de cinco décadas, incólume, na glória e no prestígio, a todos os desgastes. Pisou o palco pela última vez em 1994.

«Nasceste com as cerejas» – disse-lhe um dia a avó materna, mulher austera a cujos cuidados ficou entregue desde a mais tenra idade. E Amália, cujo nascimento alfacinha – como convém a uma fadista – não foi assinalado pela família, fixou o dia 1 de Julho para festejar o seu aniversário. A data precisa (23 de Julho de 1920) só mais tarde foi apurada. Havia já decorrido o tempo de uma infância triste e de miséria quotidiana, repartida por vários bairros operários da beira-Tejo, e parte de uma juventude carregada de mágoas e de ofícios: bordadeira (mal termina a instrução primária, aos 12 anos), engomadeira, empregada numa fábrica de bolos e rebuçados, aprendiza de costureira de alfaiate, tendo chegado a descarregar carvão e a vender fruta e souvenirs no cais da Rocha do Conde de Óbidos – cantando sempre: as cantigas de roda, as cantigas beirãs das suas raízes familiares, os tangos de Carlos Gardel, a sua primeira referência musical.

Do Retiro da Severa, então a mais conceituada casa de fados de Lisboa, onde em 1939, vencidas as contendas com a família, se estreia como fadista profissional – como Amália Rebordão e com uma capacidade afirmativa que, dando embora de beber à dor, destoava dos padrões da altura – partirá para as mais prestigiosas salas do espectáculo mundial: Olympia – um marco na consagração da sua carreira –, Bobino e La Tête de l’Art, de Paris; Savoy, de Londres; Lincoln Center, de Nova Iorque; Hollywood Bowl, de Los Angeles; Sankei Hall, de Tóquio; Canecão, do Rio de Janeiro, etc. Não sem antes ter desencadeado na Lisboa nocturna o «fenómeno Amália». Rapidamente arrastará consigo um cortejo de fãs em delírios de entusiasmo, rendido à magia do talento da jovem cantadeira, que não copiava: inovava – nas modulações da voz (in)tensa, na representação visual do fado; não reproduzia: criava – ajudada pelas composições de Frederico Valério, a introduzirem uma nova linha melódica no seu reportório.

Num caso ímpar de popularidade, Amália impõe, ainda na década de ’40, a sua presença poderosa, logo reclamada pelos palcos do teatro musical, onde alcançará êxitos populares de dimensão nacional. O Fado do Ciúme é apenas o primeiro. Entre 1940 (ano em que surge no palco do Maria Vitória na revista Ora Vai Tu!) e 1947 exercitará irregularmente a sua arte em oito revistas e três operetas. Na década de ’50 – rodara já Capas Negras, o filme de estrondoso sucesso que a introduz na tela, e também Fado, História d’Uma Cantadeira, ambos de 1947 – Amália, que cedo acede aos círculos sociais mais restritos do Estado Novo, é já a voz nacional, «embaixadora de Portugal» em vários espectáculos na Europa, no âmbito do Plano Marshall. O Barco Negro (1957), de David Mourão-Ferreira, magistralmente interpretado no filme Les Amants du Taje, levá-la-ia ao mundo inteiro.

Com Alain Oulman, um jovem compositor francês nascido em Portugal (1928-1990), a sua ascensão irresistível conheceu, na década de ’60, uma viragem decisiva: a intérprete do eterno Ai, Mouraria foi à frondosa árvore da lírica nacional e, num gesto de audácia que quebraria todos os estereótipos da tradição fadista, tomou dos poetas maiores as letras que, adaptadas por Oulman e amplificadas na sua voz, lançariam no meio fadista e intelectual o pomo da discórdia. 

O LP «Busto» (1962), o polémico EP Amália Canta Luís de Camões, o LP Fado Português (1964-65), o LP Com que Voz (1970), a marcar o reencontro com Camões, Pedro Homem de Mello, David-Mourão Ferreira, para além de Ary dos Santos, Manuel Alegre ou Alexandre O’Neill, são os mais significativos frutos da nova faceta interpretativa de Amália, a juntarem no mesmo território emocional o seu público tradicional e um público mais erudito e sofisticado. As glórias continuariam, entre homenagens e as altas condecorações que lhe firmavam o pedestal.

Dizia frequentemente que não chegaria ao ano 2000. E a verdade é que o seu coração independente (mau grado os aproveitamentos mediáticos e políticos a que se viu sujeito antes e depois do 25 de Abril de 1974) parou de bater a 6 de Outubro de 1999.