Injusto é morrer num fogo


A ministra da Administração Interna sublinhou esta semana no parlamento que perceber tudo o que se passou em Pedrógão demora o seu tempo e disse ser preciso ter certezas, mas continua a dar garantias


O homem ligou para a rádio durante esta semana, discutia-se o que pode ter falhado no fogo de Pedrógão Grande. Motorista em Pampilhosa da Serra, começou a descrever o que viveu naquele sábado.

Entrou na EN236-1. Ao fim de quatro quilómetros, diz que o vento virou e viu paus a voar, fumo, uma escuridão imensa. Depois de tantos relatos, não há forma de o coração não gelar de cada vez que alguém nos conduz de novo àquele lugar. “Diz-se que ninguém sabia a que horas começaram a morrer… Quando eu vou a ver as horas, eram 20 horas e ainda não havia mortes naquela estrada. Mas minutos depois já havia, porque eu passei por muita gente e essa gente foi-se lá enfiar. Ia uma brigada à minha frente, três, quatro minutos, e essa brigada, para mim, é responsável. Havia de ter chegado à primeira rotunda de Castanheira de Pera e ter parado, e ver o filme do fumo, para que lado o vento estava a virar. Se tem feito essa precaução ou essa notificação, de certeza que era evitado. Só quem não conhece o vento… mas estando nessa dita estrada, fui sair ao nó da Venda da Gaita para ligar à N2 e, quando cheguei ali no cimo, a passar a povoação da Derreada Cimeira, vinha outra frente onde eu também tive medo, mas não tanto. Ia convicto de que ia encontrar ali alguém para informar porque ia dar-se o pior, não encontrei ninguém. Isto aconteceu por falta de segurança de quem estava no local.”

Numa semana marcada por uma sucessão de relatórios e denúncias, como o facto de só estarem dois militares da GNR em Pedrógão na tarde da tragédia, Constança Urbano de Sousa foi ouvida no parlamento. Depois de reconhecer que há dúvidas legítimas para as quais todos exigem respostas e que seria irresponsável se tivesse respostas prontas sem certezas, garantiu que às duas da tarde havia 11 militares da GNR nos concelhos afetados e, às 16h, eram 31, número que continuou a aumentar. “Muito tem sido dito sobre a prestação da GNR e muito do que que se tem dito é profundamente injusto na minha perspetiva e na minha convicção pessoal”, disse a ministra da Administração Interna. Os números não esclarecem se houve ou não falta de segurança nem quantos militares estavam na estrada, e se isso teria mudado alguma coisa, ainda que este seja só um pormenor entre outros que continuam por esclarecer.

Constança Urbano de Sousa diz que é preciso esperar por respostas “objetivas, transparentes, ponderadas e sustentadas”. Que é preciso perceber que tipo de incêndio foi este que “num tão curto espaço de tempo se espalhou em todas as direções como um tsunami”. Diz que é preciso esperar para perceber se o sistema falhou, “qual o real impacto das reconhecidas e conhecidas dificuldades nas comunicações” e se existe uma “relação de causa-efeito” com a perda de vidas. Diz que as averiguações, nomeadamente a que está em curso na GNR, vão ouvir guardas, mas também testemunhos de quem esteve no local. Os testemunhos de quem esteve no local incluem quem diz que foi a Guarda que os mandou para a estrada. Ou quem­ relatou que ninguém os foi ajudar a combater o fogo.

A única profunda injustiça no meio de toda uma sucessão de falhas mais ou menos assumidas e fenómenos naturais será sempre a morte daquelas 64 pessoas e todo o impacto que esta tragédia teve na vida de centenas de pessoas. Constança Urbano de Sousa, ao querer enaltecer o trabalho de quem foi “inexcedível”, palavra que também usou, não podia falar de injustiça. Toda a gente reconhece o trabalho dos que combateram o fogo e certamente que, se tiver havido poucos militares ou bombeiros nas primeiras horas, a culpa não será dos que lá estavam e fizeram o que puderam e como puderam no meio de comunicações que falharam (uma prova de que falharam é que, mesmo com um SIRESP “à altura”, como disse a empresa, o posto de comando teve de mudar de sítio). A culpa ou é de quem manda e sabia de problemas antes e durante – inclusive de planeamento ou de ordenamento de território – ou de quem manda e não sabia. E por isso é que, em última instância, haverá sempre responsabilidades num caso como este, mesmo que nunca se apurem responsabilidades criminais. Mas isso de nada vale se o que está abaixo não começar a funcionar melhor. Na hora da tragédia – como no quotidiano – ser preciso um telefonema do gabinete do secretário de Estado da Administração Interna para se ir buscar carros de apoio com antenas móveis ou um pedido ao Ministério da Saúde para se reabrirem centros de saúde mostra que o país tem um problema sistémico.

 

Jornalista, Escreve à sexta-feira


Injusto é morrer num fogo


A ministra da Administração Interna sublinhou esta semana no parlamento que perceber tudo o que se passou em Pedrógão demora o seu tempo e disse ser preciso ter certezas, mas continua a dar garantias


O homem ligou para a rádio durante esta semana, discutia-se o que pode ter falhado no fogo de Pedrógão Grande. Motorista em Pampilhosa da Serra, começou a descrever o que viveu naquele sábado.

Entrou na EN236-1. Ao fim de quatro quilómetros, diz que o vento virou e viu paus a voar, fumo, uma escuridão imensa. Depois de tantos relatos, não há forma de o coração não gelar de cada vez que alguém nos conduz de novo àquele lugar. “Diz-se que ninguém sabia a que horas começaram a morrer… Quando eu vou a ver as horas, eram 20 horas e ainda não havia mortes naquela estrada. Mas minutos depois já havia, porque eu passei por muita gente e essa gente foi-se lá enfiar. Ia uma brigada à minha frente, três, quatro minutos, e essa brigada, para mim, é responsável. Havia de ter chegado à primeira rotunda de Castanheira de Pera e ter parado, e ver o filme do fumo, para que lado o vento estava a virar. Se tem feito essa precaução ou essa notificação, de certeza que era evitado. Só quem não conhece o vento… mas estando nessa dita estrada, fui sair ao nó da Venda da Gaita para ligar à N2 e, quando cheguei ali no cimo, a passar a povoação da Derreada Cimeira, vinha outra frente onde eu também tive medo, mas não tanto. Ia convicto de que ia encontrar ali alguém para informar porque ia dar-se o pior, não encontrei ninguém. Isto aconteceu por falta de segurança de quem estava no local.”

Numa semana marcada por uma sucessão de relatórios e denúncias, como o facto de só estarem dois militares da GNR em Pedrógão na tarde da tragédia, Constança Urbano de Sousa foi ouvida no parlamento. Depois de reconhecer que há dúvidas legítimas para as quais todos exigem respostas e que seria irresponsável se tivesse respostas prontas sem certezas, garantiu que às duas da tarde havia 11 militares da GNR nos concelhos afetados e, às 16h, eram 31, número que continuou a aumentar. “Muito tem sido dito sobre a prestação da GNR e muito do que que se tem dito é profundamente injusto na minha perspetiva e na minha convicção pessoal”, disse a ministra da Administração Interna. Os números não esclarecem se houve ou não falta de segurança nem quantos militares estavam na estrada, e se isso teria mudado alguma coisa, ainda que este seja só um pormenor entre outros que continuam por esclarecer.

Constança Urbano de Sousa diz que é preciso esperar por respostas “objetivas, transparentes, ponderadas e sustentadas”. Que é preciso perceber que tipo de incêndio foi este que “num tão curto espaço de tempo se espalhou em todas as direções como um tsunami”. Diz que é preciso esperar para perceber se o sistema falhou, “qual o real impacto das reconhecidas e conhecidas dificuldades nas comunicações” e se existe uma “relação de causa-efeito” com a perda de vidas. Diz que as averiguações, nomeadamente a que está em curso na GNR, vão ouvir guardas, mas também testemunhos de quem esteve no local. Os testemunhos de quem esteve no local incluem quem diz que foi a Guarda que os mandou para a estrada. Ou quem­ relatou que ninguém os foi ajudar a combater o fogo.

A única profunda injustiça no meio de toda uma sucessão de falhas mais ou menos assumidas e fenómenos naturais será sempre a morte daquelas 64 pessoas e todo o impacto que esta tragédia teve na vida de centenas de pessoas. Constança Urbano de Sousa, ao querer enaltecer o trabalho de quem foi “inexcedível”, palavra que também usou, não podia falar de injustiça. Toda a gente reconhece o trabalho dos que combateram o fogo e certamente que, se tiver havido poucos militares ou bombeiros nas primeiras horas, a culpa não será dos que lá estavam e fizeram o que puderam e como puderam no meio de comunicações que falharam (uma prova de que falharam é que, mesmo com um SIRESP “à altura”, como disse a empresa, o posto de comando teve de mudar de sítio). A culpa ou é de quem manda e sabia de problemas antes e durante – inclusive de planeamento ou de ordenamento de território – ou de quem manda e não sabia. E por isso é que, em última instância, haverá sempre responsabilidades num caso como este, mesmo que nunca se apurem responsabilidades criminais. Mas isso de nada vale se o que está abaixo não começar a funcionar melhor. Na hora da tragédia – como no quotidiano – ser preciso um telefonema do gabinete do secretário de Estado da Administração Interna para se ir buscar carros de apoio com antenas móveis ou um pedido ao Ministério da Saúde para se reabrirem centros de saúde mostra que o país tem um problema sistémico.

 

Jornalista, Escreve à sexta-feira