Terá sido o caos na ocorrência, está a ser o caos no rescaldo. Está em curso um perigoso sistema de hipnose em que se persiste na divulgação e contradivulgação de considerações e extrapolações em que os técnicos e os políticos procuram sacudir a água do capote, afirmando, em cada momento, que nada pode ficar na mesma.
Mais de uma semana depois da catástrofe de Pedrógão Grande, não se percebe porque se entretém a populaça com perguntas e pedidos de informação cabal sem que tenha sido acionado um inquérito da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) à prestação de emergência e socorro na ocorrência. Não se percebe como as outras medidas de investigação estabilizadas, por exemplo, a designada comissão independente, têm direito a fim de semana, enquanto todos os dias somos enxameados com informações parcelares e narrativas com diversas origens.
Não se compreende como é possível comparar a tragédia de Entre-os-Rios com a de Pedrógão Grande quando, na primeira, não havia nenhum relatório do conhecimento do responsável político Jorge Coelho sobre o estado de conservação dos pilares da ponte que ruiu, conforme ficou provado em tribunal, e, na segunda, há profusos relatórios sobre as falhas e as necessidades de investimento no SIRESP, há consciência de que se mexeu na estrutura da Proteção Civil em dezembro passado, há territórios florestais em que há três anos não há aprovação de candidaturas para limpeza do material combustível acumulado e, em 2011, ao acabar com o coordenador político distrital da Proteção Civil, o governador civil, deixou de haver quem coordene esse patamar na prevenção e no socorro.
Onde tem faltado discernimento, foco e bom senso (até o líder do PSD caiu na tentação demoníaca de tentar extrair aproveitamentos político-partidários de uma informação não confirmada), não tem faltado o sentido de solidariedade dos portugueses. É preciso que nem as hipnoses em curso nem a solidariedade desviem a atenção do essencial: perderam-se 64 vidas, só pode ter havido falhas, há responsabilidades políticas a serem assumidas e extrapolações a serem tiradas para que não volte a acontecer. É preciso que a reposição do mínimo de normalidade na vida das pessoas e dos territórios seja concretizada com celeridade, sem os entraves burocráticos que demasiadas vezes acontecem nestas ocasiões com os fundos de emergência.
Como temos reiteradamente afirmado, há responsabilidades do Estado em que não pode deixar de haver um mínimo de investimento em recursos humanos e materiais, todos os anos, em todas as circunstâncias, qualquer que seja o governo. A não ser assim, as dinâmicas das reformas dos operacionais, do desgaste dos equipamentos e da realidade (das alterações climáticas e dos fenómenos meteorológicos extremos à criminalidade) produzirão os seus impactos na limitação da capacidade operacional. É assim na proteção civil e no socorro como na segurança.
Se não se investe na manutenção das infraestruturas rodoviárias, a prevenção rodoviária é inexistente e há um aumento dos veículos que circulam, a probabilidade de aumento da sinistralidade é acrescida.
Se não se utilizam todas as disponibilidades de financiamento para a limpeza das florestas, persiste um discurso de valorização do interior sem correspondência concreta nas ações financiadas no terreno e, se se municipalizou a fiscalização que outrora dependia dos governos civis, existe uma forte possibilidade de se verificarem as condições para a repetição de ocorrências graves.
Se se continua a ignorar as fragilidades operacionais na segurança, dos drones nas rotas de aproximação dos aviões aos aeroportos à exiguidade de recursos humanos do SEF e das forças de segurança para as operações nas infraestruturas aeroportuárias e no território, a probabilidade de haver alguma perturbação negativa com impacto na galinha dos ovos de ouro do turismo é real.
No sistema de hipnose em curso, para além das que já foram enunciadas, existem falhas na educação, na saúde, no ambiente e no funcionamento dos serviços públicos que uns não têm autoridade para criticar, outros não querem ver, e com que os cidadãos, com mais algum dinheiro nos bolsos, condescendem.
O problema é que entre cativações e desleixos, os riscos são ampliados, os resultados não são sustentáveis e os problemas continuarão por resolver.
Com mais ou menos propaganda e oportunismo, de pouco valerão os impulsos pós-catástrofe que sempre acontecem se, no dia-a-dia, o Estado, as instituições e os cidadãos não fizerem o que deve ser feito. Sempre foi esse o drama dos problemas estruturais e das circunstâncias: não se fazer o que se deve no tempo certo. E quase nunca há responsáveis, como agora nos incêndios.
Notas finais
Perda de pio. É tão confrangedor o silêncio da esquerda sobre os incêndios como os disparates da direita. A primeira agarra-se aos eucaliptos qual coala, para esconder a ausência de pensamento sobre as questões da emergência, do socorro, da segurança e do voluntariado. São contra até que a desgraça acontece, depois lateralizam.
Cansaço acumulado. A cortina de fumo dos incêndios é o cenário ideal para a concretização de algumas nomeações pouco lineares. A tolerância dos cidadãos é sempre maior quando há algum dinheiro nos bolsos. O problema é o cansaço acumulado nos cidadãos e as suas expressões de alheamento, falta de critério ou bota-abaixismo.
À última hora. A reforma da floresta marinava; aprove-se. A descentralização de competências (e meios) para as autarquias marinava; converta-se em tema de campanha autárquica. A avaliação das extinções e fusões de freguesias hibernou; relembre-se em campanha o que PSD e CDS fizeram, mas o PS não desfez.
Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira