Nodeirinho, a aldeia fantasma. “Claro que quero ficar. Não há terra como esta”

Nodeirinho, a aldeia fantasma. “Claro que quero ficar. Não há terra como esta”


Em Nodeirinho viviam 30 pessoas. Onze morreram num fogo que destruiu uma aldeia onde o pouco que sobrou fica em volta do tanque que serviu de refúgio às chamas. Na ressaca da tragédia, há quem prefira sair por uns dias e quem fique, na esperança de impossíveis boas notícias


Apanhamos Amadeu a encher o carro com sacos e malas de viagem. Em Coimbra, está a filha à espera. “Coitadinha, ainda não caiu em si.” Para digerir tem a morte do marido, encontrado carbonizado com o afilhado de quatro anos ao colo. “Parecia Santo António com o menino”, explica Amadeu, abanando as mãos em frente à cara como a querer espantar uma imagem que dificilmente vai esquecer.

É minhoto, vive em Lisboa “desde a mocidade”, mas agora, aos 63 anos, Nodeirinho é o seu refúgio. “Conheci isto há muitos anos, através de um amigo que era de cá. Trouxe-me uma vez e apaixonei-me.”

O sítio onde levou anos a construir uma casa para gozar a reforma que estava quase aí está certamente longe do cenário de uma aldeia que perdeu 11 dos 30 habitantes numa só noite, vítimas do mais mortal incêndio a que Portugal já assistiu.

Mas não é preciso chegar a esta aldeia de Pedrógão Grande para perceber que o inferno passou por aqui. Ainda o GPS nos diz que faltam 50 quilómetros para sair da A1 e já o céu é todo ele uma nuvem cinzenta.

O fumo obriga-nos a ligar os faróis de nevoeiro e a poupar um ar já pouco respirável. Nas bermas, os esqueletos de eucalipto tombam para uma estrada cujo alcatrão passou de cinzento a preto. Agora, é o instinto que nos leva mais longe que as placas de sinalização, quase todas restos de metal apagado numa paisagem negra de cor e da ausência de gente. Mais uma vez, este é o mais mortal incêndio a que Portugal já assistiu.

Quando o cheiro a queimado e o ar irrespirável dão sinais de estarmos perto, são as fitas colocadas pela Proteção Civil que nos cortam o caminho.

É a pé que começamos a ver casas ao longe mas, antes de chegarmos à aldeia, há que passar pelo cenário de um crime que, apesar de não ter culpados, continua montado, quase como prova do fim de semana de horror que Nodeirinho viveu.

A árvore que provocou o choque entre dois carros à entrada da aldeia continua no meio do que resta das duas carcaças de metal. O alumínio escorre em estalactite pela rua abaixo. Se o seguirmos vamos dar ao centro de Nodeirinho, ou do que resta dele.

Aldeia fantasma Como aldeia pequena que é, Nodeirinho não tem portas fechadas nem portões trancados. As vozes, essas, é que estão mais baixas que o habitual, interrompidas apenas por gritos de quem volta a cair na real de tempos a tempos.

“Ai o meu Diogo, o meu Diogo.” Isabel mistura histórias, passa do presente ao passado ainda demasiado recente e vai–se dividindo como pode pelos familiares que não param de chegar.

“Bom dia”, diz Ana, “se é que este pode ser um bom dia.” Como prima direita, vem dar o apoio que pode, já que, no incêndio de sábado, Isabel perdeu o irmão. “E o Diogo?”, pergunta. “É nessa altura que os olhares se baixam e ninguém tem coragem de avançar com certezas. Afinal, Diogo, de 21 anos, saiu no sábado à noite para ir buscar ajuda e nunca mais voltou. “O meu filhinho”, diz Isabel, em tom de lamento. Como mãe que recusa aceitar a mais dolorosa das perdas, continua a acreditar que Diogo estará internado em algum hospital. “Pode ser, não pode?” Para esta pergunta, ninguém tem resposta, só abraços apertados e certezas – mais ditas que sentidas – de que tudo vai correr bem.

O tanque da salvação Nodeirinho é uma rua principal, sempre a descer, cruzada com outras mais pequenas e de nomes tão irónicos como Rua Rica, Rua das Flores ou Rua da Alegria. Mas é pela principal que vamos até encontrar o tanque que hoje serve de centro de atenções. Foi aqui que dezenas de pessoas se refugiaram quando o calor era impossível de aguentar dada a aproximação das chamas.

Marta da Conceição sentou–se na paragem de autocarro em frente a sua casa e pouco de lá tem saído. “Olhe para isto” e aponta para os braços marcados com nódoas negras. “Tiveram de pegar em mim para me pôr dentro de água”, conta. Foi Céu, a filha de Marta e Manuel, que teve a ideia de usar o tanque que abastece a aldeia como refúgio para quem não conseguiu fugir. “Abastece a aldeia? Oh menina, vem gente de Lisboa encher garrafões”, explica Manuel, para quem esta água que corre de forma contínua ganhou ainda mais valor.

Não conseguem precisar quantas horas estiveram lá dentro, mas garantem que em 84 anos de vida nunca viram nada assim. “É a prova do que a minha avó dizia. O fim do mundo é em chamas. Estamos bem perto dele”, diz Marta, agarrada ao terço, onde parece ir buscar forças para continuar.

Já Manuel mantém a cabeça baixa e prefere não voltar à madrugada de domingo. “Nunca ninguém está preparado para o que se viu aqui”, garante. Os moradores tentaram chamar os bombeiros várias vezes e houve até quem se deslocasse a Figueiró dos Vinhos para pedir ajuda. “Mas aqui não chegou ninguém, foi cada um por si”, lamenta, mesmo que nesta aldeia não haja espaço para ressentimentos.

Manuel desculpa os bombeiros – “coitados, tinham tanto onde acudir” –, Marta consegue ver futuro numa aldeia quase perdida, “com a ajuda de Deus”, claro, e nem Amadeu, que se prepara para sair durante uns dias, pensa em fugir de uma terra que já é sua. “Isto agora não parece, mas é um paraíso”, garante, “é claro que quero ficar. Não há terra como esta.”