Menos GPS, mais cabeça


Sou a primeira a confiar demais nos mapas virtuais, mas os motoristas podiam orientar-se melhor. Ou então é o GPS que está a dar cabo de nós 


Nunca tive grande jeito para orientação. Aprendi sobre coordenadas e azimutes e percebi a ciência da coisa, mas depois da teoria à prática vai um bocado de jeito e empenho. A minha memória para caminhos também nunca foi grande coisa – geralmente faço sempre uma volta diferente e maior do que o necessário, o que torna o GPS tentador. A verdade é que sinto que a minha perspicácia espacial tem piorado: antes ainda pesquisava a morada e tirava as indicações, agora é só escrever o endereço e seguir em piloto automático.

O episódio mais idiota aconteceu há uns anos, numas férias do verão. Íamos em direção ao parque de campismo da praia do Carvalhal, na Costa Alentejana. Precavidos, pusemos as coordenadas no GPS. A certa altura, já muito perto do parque, a voz mandou-nos cortar para uma estrada de terra batida. Até aí tudo bem. Umas centenas de metros à frente, uma inclinação com um pequeno riacho. Qualquer pessoa com dois dedos de juízo acharia que o GPS estava louco, mas nós admitimos que a indicação de que faltavam cinco minutos para chegar e o troço sublinhado a indicar caminho em frente tinham de estar certos.

Atravessado o riacho, o caminho começava a ter areia, mas o carro ainda rolava. Até que, em instantes, a areia transformou-se numa espécie de duna intransponível e ficámos atolados, com o sol a pôr-se no horizonte e o parque de campismo ali tão perto. Jogava o Benfica naquela noite, não me esqueço, e pensamos que foi isso que demorou o reboque. Mas de nada valeu a espera – o homem do reboque viu o riacho e recusou-se, compreensivelmente, a seguir em frente. A noite caiu, o GPS deixou de piar e tivemos de ser resgatados por uma equipa de bombeiros com holofotes e um carro daqueles grandes, corados de vergonha. Quando voltámos à estrada, já o parque de campismo tinha fechado…

Se sou a primeira a confiar demais na sapiência dos mapas de virtuais, temo que o vírus esteja a alastrar e é preciso dizer basta: temos de nos libertar disto. Nas últimas semanas, aconteceu-me duas vezes chamar um Uber e pensar que mais valia desligarem o aparelho e limitarem-se a seguir as indicações na estrada, o instinto ou a experiência. Da primeira vez queria ir para a Rua Castilho, na Baixa (o que imagino que não seja propriamente um destino exótico em Lisboa) e fomos parar ao Saldanha – parece que a máquina se enganou no destino, com uma entrada mal gravada na memória. Da segunda-vez queria ir do Beato para o Aeroporto da Portela, o que basicamente é subir um par de ruas. Como estávamos no sentido errado, o GPS assumiu que era melhor mandar-nos dar umas voltas por Marvila. A certa altura apontei uma placa que dizia “aeroporto”, mas continuámos a seguir o aparelhómetro. Nada contra os motoristas, foram os dois simpáticos.

O último até contou com graça que o “Aeroporto da Portela” no GPS o estava a mandar para dentro da pista de aterragem pela entrada do terminal militar – e que há quem já tenha caído na rasteira. Mas e se esta confiança exacerbada na tecnologia do geoposicionamento for mesmo um problema? Nunca tinha pensado nisso, mas parece que há investigadores interessados no fenómeno. Segundo uma equipa da Universidade McGill, no Canadá, as pessoas que utilizam mais estratégias de orientação espacial em que visualizam os caminhos mentalmente poderão ter o cérebro mais “protegido” de demências como Alzheimer, enquanto as que tendem a orientar-se através de estímulo-resposta, como quando fazemos um caminho tantas vezes que passamos a andar em piloto automático (o registo que o GPS veio alargar a tudo) podem correr o risco de ficar com uma atrofia no hipocampo, uma das condições na base de processos degenerativos.

Já este ano, uma investigação da UCL, em Londres, confirmou que ao seguirmos indicações do GPS o cérebro regista menor atividade, embora os investigadores não concluam se isso é bom ou mau. No Facebook há um pequeno grupo de viciados no GPS, que remete para um blogue com uma pergunta provocatória: “Ainda consegue ir para casa sem GPS?”. Vou passar a fazer esse esforço.

Jornalista, escreve à sexta-feira

 


Menos GPS, mais cabeça


Sou a primeira a confiar demais nos mapas virtuais, mas os motoristas podiam orientar-se melhor. Ou então é o GPS que está a dar cabo de nós 


Nunca tive grande jeito para orientação. Aprendi sobre coordenadas e azimutes e percebi a ciência da coisa, mas depois da teoria à prática vai um bocado de jeito e empenho. A minha memória para caminhos também nunca foi grande coisa – geralmente faço sempre uma volta diferente e maior do que o necessário, o que torna o GPS tentador. A verdade é que sinto que a minha perspicácia espacial tem piorado: antes ainda pesquisava a morada e tirava as indicações, agora é só escrever o endereço e seguir em piloto automático.

O episódio mais idiota aconteceu há uns anos, numas férias do verão. Íamos em direção ao parque de campismo da praia do Carvalhal, na Costa Alentejana. Precavidos, pusemos as coordenadas no GPS. A certa altura, já muito perto do parque, a voz mandou-nos cortar para uma estrada de terra batida. Até aí tudo bem. Umas centenas de metros à frente, uma inclinação com um pequeno riacho. Qualquer pessoa com dois dedos de juízo acharia que o GPS estava louco, mas nós admitimos que a indicação de que faltavam cinco minutos para chegar e o troço sublinhado a indicar caminho em frente tinham de estar certos.

Atravessado o riacho, o caminho começava a ter areia, mas o carro ainda rolava. Até que, em instantes, a areia transformou-se numa espécie de duna intransponível e ficámos atolados, com o sol a pôr-se no horizonte e o parque de campismo ali tão perto. Jogava o Benfica naquela noite, não me esqueço, e pensamos que foi isso que demorou o reboque. Mas de nada valeu a espera – o homem do reboque viu o riacho e recusou-se, compreensivelmente, a seguir em frente. A noite caiu, o GPS deixou de piar e tivemos de ser resgatados por uma equipa de bombeiros com holofotes e um carro daqueles grandes, corados de vergonha. Quando voltámos à estrada, já o parque de campismo tinha fechado…

Se sou a primeira a confiar demais na sapiência dos mapas de virtuais, temo que o vírus esteja a alastrar e é preciso dizer basta: temos de nos libertar disto. Nas últimas semanas, aconteceu-me duas vezes chamar um Uber e pensar que mais valia desligarem o aparelho e limitarem-se a seguir as indicações na estrada, o instinto ou a experiência. Da primeira vez queria ir para a Rua Castilho, na Baixa (o que imagino que não seja propriamente um destino exótico em Lisboa) e fomos parar ao Saldanha – parece que a máquina se enganou no destino, com uma entrada mal gravada na memória. Da segunda-vez queria ir do Beato para o Aeroporto da Portela, o que basicamente é subir um par de ruas. Como estávamos no sentido errado, o GPS assumiu que era melhor mandar-nos dar umas voltas por Marvila. A certa altura apontei uma placa que dizia “aeroporto”, mas continuámos a seguir o aparelhómetro. Nada contra os motoristas, foram os dois simpáticos.

O último até contou com graça que o “Aeroporto da Portela” no GPS o estava a mandar para dentro da pista de aterragem pela entrada do terminal militar – e que há quem já tenha caído na rasteira. Mas e se esta confiança exacerbada na tecnologia do geoposicionamento for mesmo um problema? Nunca tinha pensado nisso, mas parece que há investigadores interessados no fenómeno. Segundo uma equipa da Universidade McGill, no Canadá, as pessoas que utilizam mais estratégias de orientação espacial em que visualizam os caminhos mentalmente poderão ter o cérebro mais “protegido” de demências como Alzheimer, enquanto as que tendem a orientar-se através de estímulo-resposta, como quando fazemos um caminho tantas vezes que passamos a andar em piloto automático (o registo que o GPS veio alargar a tudo) podem correr o risco de ficar com uma atrofia no hipocampo, uma das condições na base de processos degenerativos.

Já este ano, uma investigação da UCL, em Londres, confirmou que ao seguirmos indicações do GPS o cérebro regista menor atividade, embora os investigadores não concluam se isso é bom ou mau. No Facebook há um pequeno grupo de viciados no GPS, que remete para um blogue com uma pergunta provocatória: “Ainda consegue ir para casa sem GPS?”. Vou passar a fazer esse esforço.

Jornalista, escreve à sexta-feira