Faz muito calor, Paris no final de maio está sob um verão antecipado, e já se sabe que o tempo quente é como os verdes anos, convida a todo o tipo de arroubos, bons e maus. Um casal jovem, com 20 anos ou pouco mais, atravessa o Boulevard de Sébastopol e concentra a sua cumplicidade feliz numas fotos dos dois, daquelas rápidas e pouco maiores do que o tamanho tipo passe, que certamente acabaram de tirar numa das animadas ruas de Les Halles ao sábado de manhã. O narrador segue bem perto deles, vê-lhes a expressão muito feliz, nas caras e nas fotos. Talvez venham a recordar aquele momento para sempre, talvez seja, quem sabe, o mais perfeito das suas vidas, da de cada um e/ou da sua vida a dois. Ou não, pode ser apenas um entre muitos, o início de uma encosta ascendente ou, pelo menos, de um planalto.
São muito jovens, e talvez nunca tenham ouvido o Príncipe de Salina, no filme de Visconti – “O Leopardo” é dos poucos casos em que o narrador prefere o filme ao livro –, a dizer, creio que ao padre, e se não me falha a memória, que o casamento é um ano de fogo e chamas e, depois, 30 anos de cinzas. E mesmo que o tenham ouvido, não tiveram ainda tempo para o viver, ou talvez nunca o vivam, quem sabe, cada caso, e cada casal, é um caso. Talvez também nunca experimentem o que Paul Bowles escreve no início da narrativa funesta do casal Slade, isto é, que às vezes é possível que duas pessoas, que eram próximas uma da outra, se encontrem de facto profundamente separadas. Mas ainda é muito cedo para pensar nisso, tudo isso está muito longe, tal como são muito longínquas, se é que alguma vez chegarão, a náusea triste ou a absoluta necessidade de que alguém venha desenhar um mapa sobre o que se segue – coisas de que fala Charles Bukowski em tantas das suas páginas.
Mas, seja como for, que interessa tudo isso, que interessam esses pensamentos do narrador que segue muito perto deles? Mesmo que o Príncipe de Salina tenha razão também quanto àquele casal, mesmo que haja um pouco dos Slade em cada par de amantes e mesmo que Bukowski, por entre os vapores do álcool, tenha visto muito bem o que é a vida, que importa isso? O que importa são aquelas fotografias dos dois, aquele andar luminoso pela rua, um palmo acima do chão, e aquele inconfundível sorriso do enamoramento. E a verdade – a verdade efemeramente eterna – é que, como Ilsa Lund e Rick Blaine em “Casablanca”, aqueles dois terão sempre Paris. Sim, terão sempre Paris, venha o que vier. Naquele filme, e muitas vezes fora dele, Paris não é uma cidade. Paris é uma metáfora, não tanto dos momentos perfeitos de encontro e de felicidade, mas mais da promessa de um futuro feliz e bem-aventurado. E é, afinal, essa promessa – sempre em queda, mas também em renovação, num ciclo mil vezes repetido – que faz mover o mundo. Para aqueles dois ficará para sempre a travessia do Boulevard de Sébastopol naquele sábado quente do final de maio. E isso – cinzelado na memória – aquece tantas cinzas.
Escreve à sexta-feira