Em Portugal, há muito a tentação de, perante as dificuldades para construir o que quer que seja, olhar pelo espelho retrovisor para justificar as incapacidades presentes. É um tique manhoso que conta com a falta de memória e o sentido de reserva de alguns para aproveitar as autoestradas noticiosas geradas por jornalistas que mais parecem porta-vozes, tal é o desapego ao contraditório do ditado, e por pseudopolíticos sem noção institucional.
Ciclicamente, quiçá para tentar justificar a inação política e a desmobilização das estruturas, agora mitigada com a rota de convergência para as eleições autárquicas, a direção nacional do Partido Socialista gosta de vir a público falar sobre as dificuldades financeiras e a alegada herança herdada, sem cuidar de ter senso e rigor.
Em facing-out com a política e com a participação partidária ativa, porque um Patrão parece querer conversa, terá resposta.
Em 2011, fruto dos resultados eleitorais em perda desde 2009 e das loucuras concretizadas nas campanhas eleitorais desses anos, o PS ficou numa situação financeira deplorável e numa situação política exigente, decorrente da subscrição do memorando de ajustamento com a troika, sem que os órgãos políticos competentes se tivessem reunido para validar esse condicionamento político.
Em 2011 existiam várias situações de contencioso com o fisco sobre IVA a que o partido tinha direito e que os sucessivos governos não resolveram.
Entre 2011 e 2014, não houve nenhum dirigente nacional do PS que tivesse qualquer relação comercial com o partido, por exemplo, através da criação de uma empresa para vender brindes para as campanhas do partido. Outros houve que o fizeram e julgam-se grandes autoridades morais.
Entre 2011 e 2014, com uma gestão de rigor, de contenção e de confiança com as instituições de crédito, o Partido Socialista conseguiu ganhar as eleições para as autarquias locais e para o Parlamento Europeu. Depois disso, já perdeu na Madeira e nas legislativas, ganhando nos Açores.
Entre 2011 e 2014, indiferentes às dificuldades financeiras do partido, existiram movimentações internas que levaram a que, depois do congresso nacional de 2011, o PS tivesse tido um novo congresso nacional em 2013 e novo congresso nacional em 2014, depois de umas eleições diretas também elas onerosas. Três congressos nacionais em quatro anos.
Em 2013, na sequência da conquista de 150 municípios nas eleições autárquicas, da conquista da presidência da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e da presidência da Associação Nacional das Freguesias (ANAFRE), o Partido Socialista foi esbulhado de 3,6 milhões de euros porque o PSD e o CDS aprovaram legislação que foi aprovada com retroatividade, numa iniciativa sem precedentes no quadro jurídico português. Um Patrão tem obrigação de conhecer a realidade e não ter memória seletiva, omitindo que existiam pareceres do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da auditoria jurídica interna da Assembleia da República que davam razão à forma como a direção nacional do PS de então tinha aplicado a legislação.
Um Patrão, para ser aquilo que a malta nova designa de “boss”, tinha de deixar de se queixar e fazer o que tem de ser feito: criar condições para que nestas eleições para as autarquias locais o PS tenha, pelo menos, de novo 150 municípios, a presidência da ANMP e da ANAFRE, porque ganhou as eleições. Pelo que publica o megafone da direção nacional terá feito com a dívida do PS o que alguns querem fazer com a dívida nacional, que continua a aumentar: adiar o seu pagamento para um futuro em que já não estará em funções. Não porque terá atingido os voos que lhe tinham prometido, mas porque estas coisa do poder são efémeras.
Entre 2011 e 2014, o PS ganhou eleições, sem um exacerbado centralismo democrático que, entre cativações de verbas e imposição de uma central de compras às candidaturas, gerasse condições para promover a criatividade em campanha e a penalização das economias locais, em benefício de empresas escolhidas sem transparência, sem rosto e sem que se soubessem os critérios de admissão.
No meio de tanta conversa em jeito de desculpa, já vai sendo tempo de se focar no presente e no futuro, até porque, ao olhar pelo espelho retrovisor, só vê 150 municípios a reganhar. Mas também pode ver as palavras dadas não honradas da reavaliação das extinções e fusões das freguesias, da eleição direta dos dirigentes das áreas metropolitanas, do reforço da democratização das CCDR ou da descentralização de competências para os municípios e as freguesias.
Como noutras áreas, o que falta em trabalho abunda em conversa. Conversa puxa resposta, foi hoje.
Notas finais
Picuinhas. Excetuando a integração de alguns professores nos quadros e os simbólicos cortes nos contratos de associação, estão à vista as fragilidades do discurso da aposta na escola pública. Regressam as greves num terceiro período mínimo, acaba o ano com falta de auxiliares e boa parte dos equipamentos escolares precisam de intervenções para as quais não existem recursos financeiros.
Meticuloso. Os acontecimentos de Londres, a par de outros incidentes terroristas, só vêm sublinhar a dificuldade em tomar o controlo da situação quando a ação tem fortes dimensões de imprevisibilidade. Coisa diferente é a irresponsabilidade de não se fazer o que depende da vontade política, como acontece com a falta de reforço dos meios humanos e materiais ao dispor das forças de segurança.
Incrédulo. A previsibilidade está em risco. Greves na função pública, na saúde e na educação; ameaças de greve das forças de segurança e dos juízes; cativações e cortes em barda. A espantosa realidade de Portugal irá para eleições autárquicas sem que o Tribunal Constitucional tenha ainda publicado o acórdão sobre as contas das eleições autárquicas de 2013. Quatro anos depois!