No rés-do-chão do estúdio de Artur Pizarro, um antigo café que foi adaptado às novas funções, existem quatro pianos. Como o espaço não é muito amplo, os instrumentos (três dos quais de cauda inteira) estão encaixados como peças de puzzle, deixando apenas um corredor ao centro. «Também não temos só um par de sapatos», nota o artista. «Às vezes gostamos de variar».
Cada um destes pianos tem uma história para contar. O mais antigo é um piano inglês, John Broadwood, de 1884. «Dei um concerto em Inglaterra [onde viveu até ao ano passado] e houve uma senhora que gostou de me ouvir tocar. No final veio ter comigo e disse que tinha comprado um Bechstein, se eu queria ficar com este porque não tinha onde o pôr. Trocámos números de telefone para combinarmos mais tarde. No dia seguinte batem-me à porta. Eram quatro matulões: ‘Onde é que podemos pôr o piano?».
Outro dos instrumentos é um Steinway and Sons de pintura preta baça, uma espécie de Rolls Royce dos teclados. Embora tenha sido fabricado em 1969 encontra-se impecável e há quem o considere «o melhor Steinway de Portugal». «Comprei-o com o dinheiro que vinha dentro daquele envelope», revela Artur Pizarro, apontando para uma fotografia que mostra a duquesa de Kent a entregar-lhe o prestigiado prémio de Leeds, em 1990.
«Ainda tenho uns em Inglaterra, um nos Estados Unidos e outros em casa. Queria ser a Imelda Marcos dos pianos. Ela tinha cinco mil pares de sapatos, eu só vou em nove pianos».
Pizarro atua na próxima sexta-feira, 9 de junho, às 21h00 no Grande Auditório do CCB num concerto que celebra o 25.º aniversário da Orquestra Metropolitana, de que é artista associado na temporada que está prestes a terminar. O programa será dedicado a Franz Liszt, compositor húngaro, pianista virtuoso e uma das figuras mais fascinantes do século XIX.
Sente que a forma como interpreta uma obra muda ao longo dos anos?
Muda, muda. Há muitas coisas que faço de maneira diferente. É como quando lemos um livro quando somos novos e o lemos depois uns anos mais tarde. Descobrimos coisas novas, fazemos outras relações.
Mas a obra não muda.
A obra não muda, nós é que mudamos. O diamante é o mesmo mas, dependendo de onde fizermos incidir a luz, vamos revelar facetas diferentes ou conseguimos trazer diferentes brilhos.
Há muitas obras que ainda não tenha tocado e deseje tocar?
Já toquei praticamente o reportório todo que queria: a integral de Chopin, os concertos e as sonatas de Beethoven, vários concertos [para piano e orquestra] de Mozart, acabei de fazer e gravar a integral de Rachmaninov, Mendelssohn, repertório russo, Ravel, Debussy, Albéniz, Rodrigo… Agora estou a apostar mais na música portuguesa.
E de Liszt?
De Liszt já fiz os concertos para piano, gravei as rapsódias húngaras, a sonata, mas é impossível tocar tudo, ou a pessoa corre o risco de ficar presa e não fazer mais nada.
Como aquele crítico que começou a estudar o Ulisses de James Joyce e nunca mais saiu daquele labirinto?
Exatamente. Mas já toquei quase tudo o que queria. Fiz tantos concertos, até compositores portugueses gravei, portanto já não há aquela sede. Hão de aparecer coisas que vou querer fazer, se não reformava-me e ia jogar golfe para o Estoril. Mas os interesses começam a mudar de direção, também dou aulas aqui e na Metropolitana. E acaba por ser bom fazer uma pausa porque para tocar todas essas obras eu tenho que dar algo da minha vida, da minha experiência. E depois de tantas décadas a dar, a dar, a dar, a dar, precisava de preencher um bocadinho o tanque da experiência.
Ainda faz descobertas quando toca obras de um compositor muito conhecido como Beethoven ou Chopin?
Se tem segredos? Tem sempre. E se chego a um ponto em que sinto que não está a sair nada de novo, nessa altura ponho essa obra de parte durante alguns anos. Faço um intervalo de quatro, cinco, dez anos, e quando volto já venho com a experiência que adquiri entretanto e com novas ideias. Nos anos 90 toquei o 3.º concerto de Rachmaninov tantas vezes, a sonata de Liszt tantas vezes e neste momento estão um bocadinho de parte. Quando houver a oportunidade, se ainda tiver a capacidade física, tudo bem. Se entretanto eu sentir que já não é altura, tudo bem na mesma. Fi-las tantas vezes…
O pianista é um bocadinho como o atleta de alta competição, que a partir de certa altura já não consegue correr à mesma velocidade ou saltar tão alto?
Sim. Não vai ser aos 80 anos – se ainda estiver cá – que me vão pedir para tocar o 2.º concerto de Brahms, nem o segundo de Prokofiev, nem o 3.º de Rachmaninov, porque nessa altura, meus caros, faço um concertozinho de Mozart, um concertozinho de Bach, talvez um Andante Spianato e uma Grande Polonaise Brillante de Chopin para mostrar que ainda consigo fazer tercinas ligeirinhas e rápidas. Mas com jeitinho…
O que é uma tercina?
É um grupo de três notas onde ritmicamente deviam estar duas. Se eu tiver as mãos bem cuidadas e as coisas bem tratadas ainda conseguirei fazer. Mas vamos ver, ainda não fiz 50 anos! Tenho é que dosear as coisas para, daqui a 15, 20 anos, se ainda estiver ativo, brincar como quero. Por isso é que não quero gastar agora reportório de que vou precisar nessa altura. Nessa altura quem sabe – quero fazer umas Variações Goldberg, por exemplo.
Qualquer pessoa que gosta de música sente muito prazer só de ouvir. E tocar? Como é o prazer de conseguir produzir aqueles sons?
É fantástico. É a sensação de poder pegar numa folha de papel com bocados de tinta espalhados por cima e a partir daí percorrer um caminho ao longo do tempo e conseguir entrar pela cabeça e pelos ossos do compositor. E de certa maneira trazê-lo de volta à vida. No fundo o prazer é viajar no tempo – e viajar no tempo bem.
E oferecê-lo ao público?
Oferecê-lo ao público é uma ideia errada. Não estou a oferecê-lo ao público, estou é a convidá-lo para assistir à minha comunhão com o compositor. Quando o público é voyeur não só se aproxima mais – porque quer ver melhor -, como passa a ser um público ativo. Isso vai aguçar a vontade, dá mais apetite. É a mesma coisa com as crianças. Quando andaram a olhar para a montra da loja durante oito meses à espera que viesse o Natal, estavam num estado de excitação muito maior do que no próprio dia, porque ao fim de três horas o brinquedo já está jogado a um canto. Passa-se exatamente o mesmo no concerto. Não estou a oferecer nada ao público, estou a dar possibilidade de ser voyeur de uma coisa que estou a fazer. Isso dá um saborzinho talvez mais picante.
Quando uma obra é tecnicamente muito exigente essa dificuldade não interfere com o prazer que sente ao tocar?
Se o trabalho for bem feito não. Há instrumentistas que gostam muito de ir para o palco mostrar quão difícil a obra é. Isso para mim é um efeito barato e é subestimar o público, é achar que o público não é suficientemente inteligente ou sensível para ouvir a obra, por isso temos que lhe dar um bocadinho de show. O que o compositor queria dar é o efeito musical, não estaria a pensar na dedilhação ou quantas horas o pianista tem de estudar. Comigo, seja um público em Freixo de Espada à Cinta ou em Nova Iorque, na Azambuja ou em Amsterdão, é tratado com o mesmo respeito. Não sou uma pessoa diferente de acordo com a sala em que estou.
Quando se toca naqueles palcos com muita tradição, em Londres ou em Nova Iorque, não se tem uma reverência especial?
A minha reverência é com o compositor, não é com a obra que estou a tocar.
Ainda a propósito da técnica e do exibicionismo. Houve um crítico [Lucien Debatet] que disse que o concerto n.º 3 de Rachmaminov era apenas um pretexto para mostrar o seu virtuosismo.
Isso ou é uma pessoa que não percebeu a obra – e portanto não é muito inteligente – ou então é um pianista frustrado. Há coisas difíceis, mas não me vai dizer que isto é exibicionismo. [Senta-se a um dos pianos e começa a tocar uma passagem do primeiro andamento do concerto de Rachmaninov] Se me diz que isto é tecnicamente exibicionista… E no entanto temos esta sonata de Chopin [toca muito rápido] ou esta sonata de Beethoven [incrivelmente rápido]. É tudo relativo. Isso revela mais sobre quem está a escrever do que sobre o compositor.
Estes concertos de Liszt que vai tocar na sexta-feira têm passagens muito difíceis?
Têm algumas que dão mais trabalho, mas são mais fáceis de tocar do que os estudos transcendentes ou certas passagens da sonata. Sim, temos saltos com oitavas, temos escalas, arpejos rápidos, mas não é o fim do mundo. Já passámos por tanto pior do que isso…
Liszt não é considerado dos compositores mais difíceis de tocar?
Hoje em dia já não é tão demoníaco como teria sido noutros tempos. Já foi vencido por tanta gente. É a mesma coisa que o atletismo: noutros tempos parecia impossível fazer os 100 metros numa certa velocidade e hoje faz-se em metade do tempo. Hoje todo o bicho careta toca os estudos transcendentes. Eu lembro-me de ser miúdo e tocar os 24 Estudos de Chopin era uma coisa… E os de Liszt nem se fala!
Era um bicho de sete cabeças…
Hoje faço os de Liszt, os de Chopin, os de Rachmaninov, os de Debussy, os de Stravinsky. As coisas vão evoluindo – na parte técnica, na parte musical não temos tido a mesma sorte. Todos querem tocar mais notas, mais depressa, mais forte do que o outro. O que se estão a esquecer é que há uma coisa que se chama fazer música. Hoje em dia tocar Mozart ou tocar Einaudi é quase considerado a mesma coisa, o que é profundamente chocante. É o mesmo que dizer que um bom chateaubriand é igual ao cheeseburger do McDonald’s. Não quer dizer que de vez em quando não saiba muito bem não dizer a ninguém e comermos um cheeseburger sem ninguém ver. Mas ninguém na sua mente sã vai dizer que um hambúrguer do MacDonald’s é igual a um chateaubriand. Não é. Depois admiram-se que é as pessoas não voltam às temporadas. Cometeram o pecado cardeal: subestimaram o público e o público não perdoa.
Mas há obras mais difíceis de ouvir.
Como quais? Uma ópera de Emanuel Nunes, por exemplo?
Por exemplo.
No entanto forçaram-nos a ópera de Emanuel Nunes pela goela abaixo.
Se se tratar de uma obra de que gosta muito, é importante para si ir ao concerto como espectador, mesmo que tenha em casa a melhor gravação disponível?
Sim, o estado de atenção e de espírito é diferente. Além disso, há muita coisa que eu, como pianista, posso tirar da aparência de um músico e de ver o que está a fazer com as mãos. Ter posto o dedo de uma forma ou de outra vai-me dizer uma série de coisas.
Quando está no palco consegue abstrair-se do lugar e transportar-se para esse outro lugar que é a obra?
Tenho de saber se estou a perder o público, se estou a agarrar o público, tenho de saber como é a sala, que barulhos é que há, que acústica é que tem, que intrusões é que pode ter. Por exemplo, é extremamente difícil dar um recital no teatro Tivoli, porque uma das portas de entrada para a parte de trás do palco não é à prova de som e tem uma paragem de autocarro mesmo ao lado.
Ouve-se os autocarros a passar?
Ouve-se até as conversas das pessoas na paragem. Já no São Luiz temos outro problema. No palco não só se ouve e se sente o elétrico a passar à volta como se sente o barulho do metropolitano a passar por baixo e ouvem-se os aviões. Tenho de estar constantemente a fazer um jogo para agarrar toda a gente e a mim próprio. Quando ainda por cima tenho telemóveis, biscoitos, rebuçados e coisas a cair no chão, é uma macacada. Não há poder de concentração que aguente. Veja o que agora aconteceu na Fundação Gulbenkian com a Yuja Wang.
O que aconteceu?
Esteve a tocar os prelúdios de Chopin com toda a gente a fazer barulho entre os prelúdios e saiu em pranto no intervalo, preparada para não voltar. Na cabeça da pessoa que está no palco passam 150 mil coisas por segundo. O público não sonha a pressão que nós temos em cima. Quem me dera que não fosse assim – mas depois também não dava pica… [risos] É muita coisa a passar-nos pela cabeça ao mesmo tempo. . Quando chegou ao fim de um andamento sei que a equipe dos tuberculosos das salas de Lisboa vai achar que é uma pausa para tossir. Não é! É exatamente o lugar para haver silêncio, para limparem os ouvidos e para se prepararem para o andamento seguinte.
Não consegue que essas coisas não o distraiam?
Eu estou a trabalhar com os ouvidos. Estou completamente compenetrado com o que estou a ouvir.
Está sempre a ouvir aquilo que toca?
Tenho de ouvir. Isso é a primeira coisa que eu tenho que fazer.
Não basta tocar?
Não. Você quando vai a guiar um carro a 140 km/h na autoestrada, vai só a guiar ou vai a ver para onde vai? Vai de olhos fechados?
Vou a ver para onde vou e a olhar pelo retrovisor…
Exatamente. Eu tocar com os ouvidos fechados é o mesmo que o atleta fazer os 500 metros na pista com os olhos fechados.
Pode-se espatifar…
Não ‘pode’ – vai-se espatifar na primeira curva. Eu estou a trabalhar com o feedback da sala, o som que me volta aos ouvidos, não só aquilo que estou a fazer, mas aquilo que vem para trás. O problema é que quando esse som regressa vem-me altamente poluído pela plateia, que me está a poluir informação de que eu preciso. Direito de tossir temos todos. Às vezes estou no palco e tenho uma vontade louca de tossir, e não tusso. Aguento-me. Se eu me consigo aguentar é porque é fisicamente possível. Se querem esse grau de conforto e de protagonismo, esperem que eu grave, comprem o disco, fiquem em casa. Podem tossir, podem comer pipocas, podem ouvir o recital em cuecas, o que quiserem. [risos]
Berlioz quando ouviu tocar Liszt terá dito: ‘É verdade que Deus existe – pelo menos para os pianistas’. Liszt era um homem profundamente religioso…
E recebeu mesmo as ordens religiosas – l’abbé Franz Liszt – chegou a abade.
Sente algo de religioso quando toca obras dele?
Em obras especificamente com temas religiosos, sinto essa vertente.
E uma certa transcendência?
Isso sinto em praticamente todos os bons compositores que toco. Seja Chopin a escrever uma balada, seja Rachmaninov a escrever um prelúdio, seja Shostakovich a escrever um quinteto, seja numa fuga de Bach, para mim esse poder criativo já é de certa maneira transcendente. E acho que isso é o que separa o trigo do joio em relação a um compositor.
E como intérprete sente-se um bocadinho como um feiticeiro que convoca essas forças?
Absolutamente. O que me dá gozo é poder brincar no laboratório desses criadores. Eles deixaram receitas para as poções todas e eu posso reconstruir essas poções a partir das receitas que eles deixaram. Esse é o grande prazer.