“Até agora falou-se aqui sobre os objetivos para o futuro. Eu não vim aqui para falar sobre isso, vim contar-vos os obstáculos que eu e outros yazidis enfrentámos”, começou por dizer Fareeda Khalaf (nome fictício), a mulher que foi raptada pelo Estado Islâmico em 2014 e que consigo escapar. No livro ‘The Girl Who Beat ISIS’, Fareeda revela as atrocidades que sofreu nas mãos do grupo terrorista. Mas nada se compara a um relato feito ao vivo, onde é difícil conter a emoção.
A jovem yazidi, que marcou presença esta segunda-feira nas Conferências do Estoril, começou por falar sobre a vida que levava com a sua família, como a vida de tantas outras pessoas. Fareeda queria ser professora de matemática e adorava a escola que tinha frequentado, no norte do Iraque, junto à fronteira com a Síria. Mas, em agosto de 2014, quando Fareeda tinha 19 anos, tudo mudou.
“Mataram todos os homens, incluindo o meu pai e o meu irmão mais velho, e levaram todas as mulheres para serem escravas sexuais”, recordou a mulher yazidi. “Fui levada com outras 47 mulheres para a Síria. No local onde estávamos, havia mercados dedicados à venda de mulheres e crianças”.
As mulheres eram humilhadas, espancadas e violadas a toda a hora, afirmou Fareeda. “Todos estes crimes foram cometidos contra as mulheres yazidis. Eu sou uma delas”, afirmou. “Durante o tempo que estive em cativeiro, tentei suicidar-me quatro vezes. Eles (membros do Estado Islâmico) tentaram obrigar-me em participar em ataques suicidas, mas recusei sempre. Por isso, era espancada e violada. Não houve nada que não me fizessem”, recordou.
O público, composto maioritariamente por adolescentes e jovens adultos, ouvia atentamente o testemunho de Fareeda. Como em todas as situações, existem sempre algumas pessoas que conversam, que não prestam atenção ao que está a ser dito, que ignoram o tema, que não estão sequer a par do que se está a falar. Mas quando Fareeda não conseguiu conter as lágrimas e voltou a falar sobre a sua escola, faz-se silêncio no Centro de Congresso do Estoril. “Já se passaram três anos desde que a minha aldeia foi atacada pelo Estado Islâmico. A escola onde costumava estudar e onde ganhei vontade de ser professora foi onde o grupo terrorista cometeu os seus ataques mais atrozes. A mesma escola tornou-se um sítio aterrador para mim. Nesta escola, em vez de vislumbrar aquilo que tinha idealizado para o meu futuro, vi os ossos do meu pai e do meu irmão”, contou, entre soluços, a jovem yazidi.
Fareeda diz que foram as palavras do pai que a ajudaram a lidar com todas as atrocidades que enfrentou. “Antes de tudo isto acontecer, o meu pai costumava dizer que eu era uma jovem forte. Quando estive retida e foi obrigada a enfrentar situações terríveis, recordava as palavras do meu pai”, disse a jovem iraquiana.
"As pessoas são boas, mas são influenciadas pelo ambiente que as rodeia"
Milhares de sobreviventes yazidis continuam em campos de refugiados à espera de ajuda. O Estado Islâmico mantém pelo menos 3000. “Quero que imaginem o seguinte: pensem que uma das mulheres que continua mantida em cativeiro é a vossa mulher, mãe, irmã ou filha, e está a ser usada como escrava sexual. O que fariam numa situação dessas?”, questionou.
Apesar de tudo, Fareeda continua a achar que o Homem é intrinsecamente bom e que são as circunstâncias que o tornam cruel e violento. “Veja-se o exemplo de dois meninos yazidis, que eram crianças inocentes, normais, iguais a todas as outras crianças, não sabiam nada sobre terrorismo ou radicalismo. Num vídeo divulgado no mês passado, vê-se as duas crianças a cometerem um ataque suicida contra o exército iraquiano. Eles foram vítimas de uma lavagem cerebral. As pessoas são boas, mas são influenciadas pelo ambiente que as rodeia, isso é que faz com que acabem por se tornar terroristas”, afirmou.
Depois de muitos momentos com ruído de fundo, com conversas cruzadas e com jovens adolescentes desligados do que ali se estava a passar, a verdade é que, no final do discurso de Fareeda, já ninguém falava, já ninguém queria conversas. A jovem yazidi terminou o discurso e a plateia pôs-se de pé para aplaudi-la, com muitos elementos a tentarem conter as lágrimas.