Um escritor perdido no tempo e que já não se lê, Roger Vailland, descrevia em 1950, no seu livro de viagens “Borubudur”, uma ida ao Paquistão em que a história das limpezas condicionava em muito a higiene forçada dos passageiros. O avião proveniente da Europa ocidental aterrava em Carachi. “Os passageiros desatam o cinto e levantam-se para sair do avião:
– Não, não – exclama a hospedeira, que tem a experiência na rota. – Por favor, por favor, fiquem sentados… Passa um instante. A porta do avião entreabre-se. Duas mãos enluvadas de branco, segurando uma espécie de grande irrigador, lançam em todo o avião uma nuvem que tem o cheiro dos desinfetantes para matar moscas, mosquitos, traças e percevejos.” Todos os passageiros são borrifados diretamente num processo que dura, por lei, dez minutos. Alguns praguejam em voz baixa, desejando ardentemente que o Paquistão seja arrasado por bombas atómicas. Todos os ocidentais em aviões procedentes do Ocidente, e apenas do Ocidente, eram sujeitos a este tratamento contra os “miasmas”. Durante séculos de colonização, os locais eram submetidos a todos os tipos de discriminação. “As velhas inglesas não se lavavam numa bacia paquistanesa sem a terem purificado queimando álcool.” Agora, os paquistaneses exerciam a sua vingança histórica, usando a higiene como arma.
Em 1968, centenas de estudantes foram massacrados na Praça das Três Culturas, no centro da Cidade do México. Paco Ignacio Taibo ii escreveu um curto texto sobre os seus mortos.
“Como se cozinhou a magia? Com que se alimentava a fogueira? De onde saíram os 300 mil estudantes que chegaram a Zócalo no dia da manifestação do silêncio? […] qual foi o destino de Lurdes? Quem estava por detrás da porta da universidade no dia do tiroteio? Como fabrica uma geração os seus mitos? Qual era o menu diário da cantina de Ciência Política? […] Porque caiu Romeu por causa de uma minissaia? Onde deixaram os nossos mortos? Onde deixaram os nossos mortos? Em que sítio de merda deixaram os nossos mortos?”
Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, nascia um amor. Um acaso como todos. Se ele não tivesse perdido o autocarro. Não teria ido a pé e parado naquele café. Se não tivesse entrado, não a tinha visto. Se não houvesse esse encontro, aquela história não tinha acontecido. No entanto, tudo o que aconteceu a partir dali parecia inscrito em pedra, como traduzisse uma necessidade tão grande como a lei da gravidade. “Se já não sei tudo o que vivi/ É que os teus olhos não me viram sempre”, notava Paul Éluard. As pedras caem. Porque não cairíamos nós? Parecia que o tempo tinha sido cortado naquele momento. E de alguma forma criado: tudo o que naquele segundo acontecia estava agora inscrito no passado e tinha dado um sentido ao futuro. Um amor é um lugar no mundo. Um acontecimento que não é previsível ou calculável pelas leis do mundo. Mas rompe a trama da nossa história e faz, como escreveu o poeta francês Mallarmé, “Que o acaso seja finalmente fixado” (“Le hasard est enfin fixé” ).
Será que o mundo se rege também pelas regras das nossas vidas? Teremos uma história feita de acasos ou uma história apesar dos acasos? Um dos mais conhecidos trocadilhos sobre a história, o amor e os seus acasos é o “nariz de Cleópatra”. A frase é de Pascal e garante que “se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da Terra teria mudado”. Nem César nem António se teriam apaixonado por ela, e o destino do Império Romano teria sido diferente. A história parece não sofrer apenas com a roleta do amor, também padece do efeito corta-unhas. Com Ricardo iii surge a célebre parábola relativa ao destino de um reino que é decidido por algo de infinitamente pequeno:
“Por falta de uma unha, perdeu-se o sapato;
Por falta de um sapato, perdeu-se o cavalo;
Por falta de um cavalo, perdeu-se o cavaleiro;
Por falta de um cavaleiro, perdeu-se uma batalha;
Por falta de uma batalha, perdeu-se um reino!”
Na coletânea de textos “If It Happened Otherwise” (Se isto tivesse acontecido de outra maneira), André Maurois é autor de um capítulo em que se “evita” a Revolução Francesa imaginando uma reforma financeira bem–sucedida, efetuada pelo ministro do rei Turgot, acompanhada pela derrota do parlamento francês em 1794 e pela reestruturação da polícia de Paris. O mesmo Maurois defendia que “não existia um passado privilegiado (…) Existiam uma infinidade de passados, todos igualmente válidos (…) Em todos os momentos do tempo, por muito breves que sejam, a sucessão de acontecimentos divide-se em vários ramos, como o tronco de uma árvore”.
Para historiadores influenciados pelo marxismo, como E. H. Carr, esta ideia de uma história contrafactual em que o acaso determinava uma mudança de agulha, entre milhares de mudanças de agulhas possíveis, era um exercício de lixo histórico porque tinha como pressuposto a existência de uma história de grandes homens em que um ataque de soluços podia fazer mudar todo o seu curso. “Num grupo ou nação que esteja na cauda e não à frente dos acontecimentos, prevalecerão as teorias que acentuam o papel do acaso ou do acidente na história. A visão de que os exames são uma lotaria ficará sempre popular entre aqueles que ficaram em terceiro lugar”, garantia Carr.
Pelo mesmo tom se espraiou o conhecido poema de Brecht: “Se este homem insubstituível franze o sobrolho/ dois reinos periclitam/ se este homem insubstituível morre/ o mundo inteiro se aflige como a mãe sem leite para o filho/ se este homem insubstituível ressuscitasse ao oitavo dia/ não acharia em todo o império uma vaga de porteiro.”
O problema de negar a possibilidade de a História poder ser diferente vai bastante mais longe que negar que um homem sozinho a faça. Se não puder ser diferente, ela não pode ser um exercício de liberdade humana. Se estiver teleologicamente determinada, as coisas acontecem mesmo que fiquemos na cama a dormir. Desse ponto de vista, a ideia de uma história virtual que ficou em latência e que se podia ter concretizado, em potência, de uma forma diversa permite-nos usar o passado para refletir criticamente sobre o presente e, ao mesmo tempo, assinalar que quem faz a sua história é a própria humanidade. E que ela não está inscrita nos livros de História antes de acontecer. Como assinalava o escritor Robert Musil no seu gigantesco romance “O Homem sem Qualidades”, “se existe aquilo a que se chama sentido da realidade – e ninguém duvidará da sua raison d’être –, então deve também existir aquilo a que se chama sentido da possibilidade”.
Se é verdade que não estão determinados os acontecimentos futuros, como garantia um conhecido filósofo grego, não é menos verdade – para nos circunscrevermos ao campo de um célebre desafio de futebol no “Flying Circus” dos Monty Python, entre filósofos gregos e alemães (a propósito, vencido pelos primeiros com um golo de cabeça solitário de Sócrates) – que, como dizia Marx, “a tradição das gerações passadas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos” e, se os homens fazem a sua própria história, “não a fazem por sua livre iniciativa nem em circunstâncias escolhidas livremente”. As duas afirmações são fundamentais, sendo a primeira, da possibilidade de a fazer, ironicamente, aquela que é mais combatida nos dias de hoje. Quem manda pretende fazer-nos crer que o nosso presente é inalterável e que qualquer intento de o alterar só traz sofrimentos agravados aos dias de hoje. O mundo seria caótico, complexo e impossível de mudar. Cabe-nos apenas, segundo reza essa espécie de pensamento único, seguir as leis do mercado e deixar de tentar subir o rio da História. A corrente seria demasiado forte para as mãos humanas. Ao determinismo emancipatório de uma leitura simplista do marxismo sucederia uma visão caótica da História de sinal contrário. Na primeira, a humanidade poderia mudar de uma forma quase automática e sem necessidade de concurso de pessoas concretas; no segundo, as pessoas não conseguiriam fazer mais nada do que olhar para as flutuações da bolsa e aproveitar. Não estava nas suas mãos mudar a natureza imutável dos negócios.
Os homens e mulheres que se opunham a esse curso único da injustiça eterna só acabavam na cruz, como sucedeu a alguns milhares de escravos revoltados dirigidos por Espártaco, ou a impor ditaduras que negavam todas as promessas de libertação. No filme com o nome de “Spartacus”, realizado por Stanley Kubrick, em 1960, com argumento de Dalton Trumbo baseado no livro de Howard Fast – tanto o argumentista como o escritor eram comunistas e estavam na lista negra de Hollywood, e impedidos de trabalhar pela comissão de inquérito do senado dos EUA às atividades antiamericanas, dirigida pelo senador republicano Joseph McCarthy –, há uma cena em que, depois de derrotados numa última batalha, os romanos prometem aos escravos sobreviventes que serão poupados à morte na cruz se denunciarem Espártaco. Um a um, os escravos vão-se levantando dizendo que eles são Espártaco, não admitindo a denúncia, não fugindo à morte, e reivindicando serem sujeitos coletivos de uma história. Mais tarde ou mais cedo, eles regressarão para ajustar contas com esta história inacabada e serão uma legião de milhões.
P.S. Escrevi este texto lembrando-me do jornalista Miguel Urbano Rodrigues, que sabia como ninguém contar histórias e viagens, e que nelas buscava um passo mais para a libertação da humanidade.