A tentativa de “normalizar” a presença de Trump em Bruxelas levou a uma versão redux da Cimeira NATO, sem declaração final e com uma coreografia minimalista. Suprema ironia, o certificado trumpiano de obsolescência da NATO, bem como a sua revogação, passadas poucas semanas, pode contribuir para devolver as cores da vida a uma organização que nasceu como tripé europeu da pax americana. Lorde Ismay, primeiro secretário-geral da NATO, cunhou a fórmula que explicava a razão de ser da organização: “Manter os americanos dentro, os russos fora e os alemães em baixo.” Depois da desaparição da URSS, só um destes pressupostos se manteve. Com a ajuda de Putin, os episódios de “congelamento” de conflitos na Geórgia e na Ucrânia devolveram uma segunda razão de ser à aliança. Mais recentemente, Trump pareceu querer celebrar de forma negacionista o centenário da entrada dos EUA na i Guerra Mundial e fez tremer um dos apoios do tripé de lorde Ismay. Sobra a Alemanha, que continua, em matéria de defesa e de política externa baseada no hardpower, a autolimitar-se quer na NATO, quer na União Europeia.
A cimeira de ontem incluiu uma dose reforçada de contabilidade criativa no que respeita ao caminho para atingir a meta dos 2% do PIB gastos com o orçamento de defesa de cada um dos Estados. A sra. Merkel, sensatamente, recordou a necessidade de levar em linha de conta também as verbas gastas na cooperação para o desenvolvimento. A abordagem preventiva de Estados falhados, guerras civis e situações de subdesenvolvimento que multiplicam os fluxos migratórios, o tráfico de armas e de seres humanos e o fundamentalismo religioso deveria dizer muito a Portugal, que está mais próximo desta frente que dos exercícios musculados na fronteira leste.
O atentado de Manchester reforçou a pressão para a NATO aderir à coligação anti-Daesh e implicou a criação de mais um cargo, o de responsável pela luta antiterrorista. Stoltenberg começou o dia de ontem com um exercício de equilibrismo: a adesão da NATO à coligação anti- -Daesh não significa que as forças dos aliados sejam empenhadas em combates terrestres. Esqueceu-se de acrescentar: “Até ao próximo atentado que ocorra no território de um dos aliados.” Para quem se possa ter esquecido: a Turquia é membro fundador da NATO.
Com a necessidade de amordaçar Trump, a cimeira acabou por não discutir as consequências geoestratégicas do expansionismo militar de Putin. Jogos de guerra recentes permitiram descobrir a perda de capacidades da NATO na defesa do oceano que lhe deu nome. A tecnologia não substitui os exércitos convencionais que só se deslocam por via marítima. E os aliados perderam capacidades navais durante as últimas décadas, permitindo à nova geração de submarinos russos condicionar as rotas atlânticas. Bem andou a armada portuguesa, que nunca aceitou as doutrinas NATO que favoreciam a especialização de cada aliado e manteve, contra a vontade dos EUA, várias capacidades, incluindo a submarina.
Continua em aberto a lista de grandes compras das Forças Armadas Portuguesas: transporte aéreo estratégico (a obsolescência e crescentes limitações operacionais dos C-130 obrigam à sua substituição, de preferência por equipamentos que ajudem a consolidar o cluster aeroespacial português), um navio polivalente logístico (LPD, que poderia ser construído pela indústria naval portuguesa) e a decisão quanto à substituição dos F-16 por um avião multifunções de 5.a geração. Adiar por muito mais tempo as decisões relativas a estes programas terá custos incomportáveis, muito para lá dos financeiros.
Escreve à sexta-feira