Em defesa da blasfémia


A liberdade de religião obriga ao respeito pela liberdade de não ter religião, blasfémia incluída


Por estes dias em que o divino consente no convívio com o humano, nem que seja por via televisiva ininterrupta, ou, à falta de divino, o humano convive com os humanos, há entre os teólogos os que procuram distinguir entre visões e aparições, entre a vontade do sujeito vidente e a vontade do objeto avistado. Para os não cartesianos, os sentidos serão uma via válida para o conhecimento do divino, mas valerá a pena dar crédito aos que apostam na via racional. Atentemos neste fragmento do discurso neocartesiano de Stephen Fry, proferido em 2015 no programa “The Meaning of Life”, na televisão irlandesa, respondendo ao entrevistador que lhe perguntava o que diria a Deus às portas do paraíso: “Como se atreve a criar um mundo em que há tanto sofrimento? É absolutamente, absolutamente maligno. Porque devo respeitar um deus caprichoso, maldoso, estúpido, que fez um mundo tão cheio de injustiça e dor?”

Como até a televisão irlandesa tem espetadores, houve uma alma altruísta que apresentou queixa às autoridades policiais considerando que alguns telespetadores (que não o queixoso) poderiam considerar que o inglês Fry teria proferido uma blasfémia. A Constituição irlandesa incumbe o legislador de punir os atos blasfemos. Felizmente, também manda proteger a liberdade religiosa e de culto e a liberdade de expressão. A República herdou em 1922 os precedentes judiciais britânicos em matéria de blasfémia, dirigidos à proteção do culto protestante, mas “reformados” em benefício do culto católico. Mais recentemente, movido pelos ventos da modernidade e da igualdade, o Defamation Act de 2009 alargou a punição dos atos blasfemos praticados contra todas as religiões e cultos.

O leitor amigo, já fumado em santidade por estes dias, pensará: costumes de celtas e de povos do Norte, gente que gasta o que tem e o que não tem em círios e álcool, o que tem isso a ver com Portugal e os portugueses? Deixe-me partilhar consigo uma das mais belas obras do legislador nacional, dedicada ao “ultraje por motivo de crença religiosa”: “Quem publicamente ofender outra pessoa ou dela escarnecer em razão da sua crença ou função religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”

Este n.o 1 do artigo 251.o do Código Penal de 1995, código que foi desde então revisto 42 vezes…, cria um tipo penal que, ainda que inspirado pela necessidade de punir a blasfémia, obriga ao preenchimento de elementos que permitem blasfemar com maior liberdade do que na Irlanda. Em primeiro lugar, é preciso ofender outra pessoa diretamente ou “dela escarnecer” a título individual, o que deixa alguma amplitude de movimentos para ofender diretamente Deus ou dele escarnecer, dispensando os crentes e os funcionários religiosos. Em segundo lugar, a ofensa ou o escarnecer têm de ser adequados a perturbar a paz pública. Este segundo segmento assenta no respeito pela democracia: poder-se-á ofender ou escarnecer de Deus, mas convirá não o fazer na proximidade de multidões de crentes, em particular nos dias que o calendário público assinala como sendo de tolerância. Tanto mais que a alínea b) do artigo 252.o pune com a mesma pena quem “publicamente vilipendiar ato de culto de religião ou dele escarnecer”.

Bem andou Stephen Fry, pensando por certo em mudar-se para a Lusitânia depois de consumado o Brexit, em escarnecer e vilipendiar diretamente Deus, não o fazendo em relação nem a um ato de culto nem a um crente. Nestas coisas da religião, o diabo são os intermediários. Dizem.

 

Escreve à sexta-feira