O universo vivido e desenvolvido de Mia Couto

O universo vivido e desenvolvido de Mia Couto


Mia Couto é uma referência no que toca à literatura lusófona. De origem moçambicana, traz as suas origens para grande parte das obras que desenvolve, colmatando num imaginário rendilhado e maravilhado. Maravilhado com as suas terras, os seus rios, os seus mares, e os seus lugares de predileção. 


Todo o traçado evolutivo da personalidade e da criatividade do autor radica nesse expoente literário, que desemboca em sensações com vista para o Índico. Mesmo que Moçambique não seja o mundo, não é longe a proporção que assume nos contos e recontos de Mia Couto, viajando na proa de uma costa onde os sonhos se medem e se intervalam com as palavras, as ideias, as narrativas, as viagens.

António Emílio Leite Couto nasceu na Beira, principal cidade do estado moçambicano de Sofala, no dia 5 de julho de 1955, no seio de uma família de emigrantes lusos. O pseudónimo “Mia” derivaria precisamente da sua infância, durante a qual tinha uma adoração por gatos, e que ajudou o seu irmão a encontrar uma referência para o futuro escritor, porque, à data, não conseguia pronunciar o seu nome. Antes de completar o seu ensino preparatório, herdou a veia lírica do seu pai, Fernando Couto, e viu poemas seus publicados no período local “Notícias da Beira”, e essa motivação da escrita, aliada à prossecução dos seus estudos, conduziram-no para Maputo, então designada Lourenço Marques, capital do seu país. Foi aqui que iniciou a sua licenciatura em Medicina, curso que abandonou a meio para exercer a profissão de jornalista no pós-25 de abril. Os seus estudos decorreram numa fase em que a pressão ditatorial se fazia sentir nesta colónia portuguesa, o que motivou que o futuro escritor se juntasse à Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO. No encalço do seu trabalho, acabou nomeado diretor da Agência de Informação de Moçambique, estabelecendo contactos privilegiados nas diversas províncias, numa fase de enorme conturbação política e social.

O seu ofício jornalístico prosseguiu nas funções de diretor da revista “Tempo”, e no jornal “Notícias”. Foi por esta altura, inícios dos anos 80, que publicou o seu primeiro livro de poesia, de título “Raiz de Orvalho” (1983). A obra assume um cunho intervencionista, que se opõe à propaganda marxista de então, para além de discutir questões identitárias e tradicionais da cultura africana e moçambicana, rondando a terra, as tradições e a língua. Na poesia, só voltaria em 2011, apesar de várias antologias, com o trabalho “Tradutor de Chuvas”. Uma destas foi realizada pelo também poeta e biólogo moçambicano Orlando Mendes, num trabalho que derivou de uma palestra dada por este, e que medita sobre a literatura do país.  Seria, assim, a prosa que Mia Couto iria privilegiar desde então, principalmente após abandonar o jornalismo, em 1985.

Fui sabendo de mim 
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim 
com o mistério de serem poucos 
e valerem só quando os perdia

fui ficando 
por umbrais 
aquém do passo 
que nunca ousei

eu vi 
a árvore morta 
e soube que mentia

Mia Couto, in “Raiz de Orvalho” (1983)

Nessa fase, onde se desfaz das suas responsabilidades profissionais, e retorna aos estudos, apontando para a sua formação em biologia. Mesmo que tenha reencontrado o prazer da sua vida na atividade marinha e biológica, dirigindo a Impacto, Lda – Avaliações de Impacto Ambiental, nunca desproveu a escrita dos seus contributos, sendo até o autor mais traduzido da sua nacionalidade. A sua extensa obra, e o repertório assinalável que vai detendo levou-lhe a que fosse nomeado Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, no ano de 1998; para além do Prémio Camões, atribuição máxima da literatura de língua portuguesa, em 2013.  Para além dessas condecorações, tem assento na Academia Brasileira de Letras desde 1998, com um compromisso de correspondência, devido aos constrangimentos geográficos. Mesmo isso não o coibiu de ser docente de ecologia na Universidade Eduardo Mondlane, onde se licenciou, e de gerir algumas das zonas costeiras moçambicanas, no que aos estudos concerne. Aqui, também estuda os mitos e lendas que oferecem um pendor místico às águas e recursos destas costas.

A profundidade narrativa que depositou nas suas obras, para além da recriação do idioma português que levou a cabo, entre neologismos e empréstimos dos dialetos locais, tornaram-se premissas identitárias do seu eu literário. Um dos principais exemplos dessa toada é “Terra Sonâmbula”, livro de 1992, que se vai desenrolando numa espécie de mise en abysme (narrativa em abismo, popularizada pelo francês André Gide), sendo protagonizado pelos resquícios deixados pelo colonialismo. Estes acabam por ser o mote, e a desproporção de uma guerra civil, que mina a harmonia e a estabilidade de todo o país moçambicano. Este trabalho seria premiado e conotado como uma das obras referenciais do continente e da literatura lusófona, assim como com o devido reconhecimento por parte das instâncias moçambicanas.

O seu compromisso com a escrita tem raízes nas próprias origens do mundo, procurando alimentar a união íntima da alma com a dimensão térrea e natural, e desmistificando-a com, precisamente, os vocábulos que vai criando. Essa recriação semântica faz parte da sua vinculação ao seu país, sem nunca descartar as influências de todas as diferentes regiões que constituem este último. Os cenários fantásticos e inovados explanam o sonho e a interligação deste com muitos outros, construindo as realidades pretendidas pelo autor num universo de histórias pluridimensionais. É nestes parâmetros que é influenciado pelo realismo mágico, e é comparado a nomes, como o colombiano Gabriel Garcia-Márquez, e como o brasileiro João Guimarães Rosa, estando associado a este também pelo seu rasgo inovador na semântica de língua portuguesa.

Para além desta, são muitas os contos, os romances, e as crónicas, estas proeminentemente em jornais nacionais, mas escrevendo também sobre temas internacionais (destaca-se “E se Obama fosse Africano”, na altura em que este venceu as eleições pela primeira vez), que Mia Couto assinou, adaptando-se aos potenciais diferentes públicos, e estando difundido em línguas, como o inglês, o italiano, e o francês, para além de algumas adaptações cinematográficas. É nos contos que o seu discurso inovador assume maiores proporções, num “faliventar” muito peculiar. Tudo isto acompanha, de forma sintomática e sintonizada, as colinas superadas e as águas navegadas nas rotas que as personagens que cria assumem, dando origem a narrativas para qualquer faixa etária. O fantástico correlaciona-se com aquilo que o mundo tem para oferecer, conduzindo o leitor para um universo muito identitário, que convida a que se incorporem os seus cenários no expoente máximo da imaginação humana. O mundo das sensações interliga-se com a plataforma criativa de Couto, transmutando o ideal semântico e sintático até ao convés do subconsciente.

O seu percurso na literatura foi-se avolumando neste século, escrevendo à volta de uma dezena de obras, entre elas “Vozes Anoitecidas” (coleção de contos de 1986), “Cronicando” (livro de crónicas datado de 1988), “Contos do Nascer da Terra” (1997, onde um pai procura oferecer a lua à sua filha), “Vinte e Zinco” (1999, em que as entranhas terrestres sentem a calamidade da Guerra Colonial), “O Último Voo do Flamingo” (2000, onde os capacetes azuis responsáveis por manter a paz no pós-guerra moçambicano começam a, inexplicavelmente, explodir), “O Fio das Missangas” (2003, um conjunto de contos de um “fabricador de ilusões”), e “Jesusalém” (2009, contando a vida familiar e em crescendo de uma criança local, que desemboca nos dilemas e conturbações do seu pai). De qualquer forma, e indiferentemente do género, as idiossincrasias de Mia são marcantes e denotáveis em qualquer texto da sua autoria, revelando-se nas metáforas requintadas e nos termos engendrados pelo seu expoente criativo. No âmago, está o seu declarado prazer por “desarrumar a língua”. Este gosto estendeu-se aos livros para crianças, tendo, no seu repertório, “A Chuva Pasmada” (2004, numa realidade na qual a água começa a escassear dos céus e dos rios), e “O Outro Pé da Sereia” (2006, em que as várias personagens cruzam locais, tempos, e as próprias vidas).

Não obstante uma vida muito linear e consistente, Mia Couto conheceu e viveu o suficiente para desenvolver um amplo e sofisticado universo literário, desdobrando-se na poesia, na prosa, e na própria opinião sobre a realidade vivida e sentida. Seguindo as pisadas do seu compatriota José Craveirinha, conheceu, na literatura, o cantinho especial das suas viagens diletantes e itinerantes por cenários nunca antes conhecidos, por gentes nunca antes desvendadas, por tempos nunca antes atravessados, mas sem nunca esquecer as suas raízes. O seu imaginário foi, e é robusto o suficiente para divagar e divulgar o seu país, para além das entranhas geológicas e sentidas do próprio mundo. Da Natureza mais visceral, da vida e da espécie menos central, o universo de Mia Couto ganha amplitude num ângulo bem giro, abarcando as dimensões material e imaterial, e construindo uma realidade mais íntima do prazeroso ideal.