É atualmente deputado independentista no parlamento catalão. Estava em África como cooperante quando o convidaram. Encara isso como a sua última batalha e está convencido de que rapidamente voltará à sua vida calma. É a voz histórica da canção da Catalunha. Há muito que abandonou a música mas, como nos tempos da ditadura, é uma espécie de voz que representa muita gente. Llach veio a Lisboa receber um prémio da SPA.
Quando nasceu sentiu-se logo catalão?
Não. Eu era catalão. O problema é que somos, não nos convertemos. Nasci num ambiente rural onde as pessoas são catalãs, falavam catalão e tinham um sentimento absoluto de catalinidade. Mas acho que só me dei conta de que ser catalão era um ato de vontade quando fui a Barcelona. E deparei-me com uma grande cidade que fervilhava, apesar do franquismo, com movimentos operários e o movimento estudantil nas universidades. Por sorte – por desgraça, pensam alguns –, entro num movimento de música na Catalunha que se chamava a Nova Cançó, e aí tomei consciência dos problemas que tinha exercer a catalinidade. Cantar em catalão estava muitas vezes proibido e, quando não estava, fazia-se com enormes dificuldades, sujeito a ser vigiado e censurado. Só o facto de cantares em catalão era considerado um problema de Estado. Eras vigiado pela Guarda Civil, tinhas de pedir autorização antes de cada recital, etc., etc. Na universidade dei-me conta de um conjunto de coisas que não via quando vivia na ruralidade: a repressão e as torturas. Eu estudava numa faculdade muito ativa no movimento antifranquista [a Faculdade de Economia]. Isso teve o efeito de me mudar, eu que vinha de uma educação escolástica e muito de direita, sofri um golpe interior, a que respondo tomando uma atitude perante a vida que eu não imaginaria vir a tomar quando tinha 12 ou 14 anos.
No seu local de nascimento não se sentia entre os derrotados da guerra civil?
Não, até porque o meu pai estava do lado dos vencedores.
Porque eram carlistas [um movimento político, com maior expressão na primeira metade do século xix, que propunha uma dinastia alternativa aos Bourbons e que defendia conceções tradicionalistas, não só do ponto de vista político como do ponto de vista religioso]?
Sim, o meu avô era carlista, que era um posicionamento político muito particular. Vivi numa casa de vencedores da guerra civil, mas é uma coisa muito difícil de explicar porque, mesmo no campo dos vencedores, que era o caso da minha família, não se falava nunca da guerra civil. Era uma coisa muito estranha. Nunca falavam de uma forma triunfal, nem mesmo de uma forma episódica. Era como um tabu.
Nunca chegou a discutir com o seu pai a guerra civil?
Sim, claro. Mas só em adulto. Nas famílias, por medo e pelo impacto humano violentíssimo que implicou a guerra, não se falava dela. E se se falava, fazia-se com muita contenção. As pessoas tinham medo e sofrimento interior ao tratar esse assunto.
Quando em 1968 compôs “L’Estaca”, que se converteu num hino sobre a necessidade de fazer cair a ditadura franquista, o seu pai não lhe disse nada?
Sim, ele sofria muito. Não tanto pela questão ideológica, mas pelo medo que me acontecesse alguma coisa. Discussões ideológicas, em família, não havia. Os meus pais aceitaram as minhas posições calmamente, primeiro com resignação, e depois, a minha mãe, com militância e entusiasmo. O único argumento que me apontavam era o da segurança, nunca sobre as minhas escolhas.
Quando regressa do exílio….
Não gosto de usar a palavra exílio. Eu era um estudante que partiu para França, não me posso comparar com o drama dos exilados republicanos.
Vou reformular a pergunta: quando regressa de Erasmus (risos)…
Sim, do Erasmus franquista (risos).
… faz o mítico concerto a 15 janeiro de 1976, dois meses depois da morte de Franco, ainda no estertor do regime, com mais de 30 mil pessoas na assistência a gritarem palavras de ordem contra a ditadura. Qual era a importância desse momento?
A questão é que nós, os cantores, ocupávamos na altura uma posição central na sociedade catalã que não era a nossa. Mas como não havia imprensa em liberdade nem rádio em liberdade, de alguma maneira éramos aqueles que escapavam ao controlo do franquismo e éramos seres relativamente livres que, através das canções e muitas metáforas e da inteligência interpretativa do público, conseguíamos ser pontos de referência daqueles que estavam nas ruas mas não se podiam expressar. Eu, por exemplo, neste recital em 1976, tinha perante mim quase todos os académicos, os sindicalistas. Porque era aí que se podiam encontrar. Não havia maneira de as pessoas se juntarem noutras circunstâncias. E nós, além de termos alguma militância política, éramos muito “transversais”, éramos de alguma forma reconhecidos por muitos setores da sociedade catalã. Vinha ver-nos toda a gente que era antifranquista.
O concerto era, ao mesmo tempo, um ato de contestação e resistência. Entre as músicas, as pessoas gritavam “amnistia e liberdade” e, na música sobre o 25 de Abril, “o povo unido jamais será vencido”.
Havia um povo inteiro que procurava conquistar a sua liberdade. A partir desta mobilização coletiva neste momento histórico, aparecem uma série de organizações de trabalhadores, partidos políticos e associações de moradores. Estavam todos mais ou menos na clandestinidade, mas a sua mobilização nas ruas e a sua pressão obrigam o regime a mudar depois da morte de Franco. O regime muda porque as ruas mudam antes. Eu nunca dei mérito pela chamada transição [processo de mudança negociada do franquismo para um regime democrático, que se estabelece na Constituição de 1978] à classe política. Os políticos foram obrigados a isso.
O seu mérito será apenas a sua reconversão em democratas?
Democratas com muitas aspas, mas sim, o seu mérito está no seu sentido de oportunidade.
Que significado tinha a revolução portuguesa para vocês naquele momento? Uma das canções , “Abril 74”, que é cantada no concerto é mesmo sobre a Revolução dos Cravos.
Naquela península horrorosa, do ponto de vista democrático, que era a península Ibérica, onde se mantinham os restos dos fascismos emergentes nos anos 30 e 40 – fascismos, para além disso, com plenos poderes –, Portugal foi um farol. É a primeira vez que na península há luz e nos dizem: “É possível.” E numa situação de franquismo agónico, as fortes simbologias que nos chegavam de Portugal – depois, o desfecho é outra história – eram como um hino à esperança. Foi uma onda de ânimo. Depois de 40 anos de ditadura, a possibilidade de fazer cair o regime franquista era importantíssima.
Uma coisa de que me recordo em criança era muitos estrangeiros e gente do Estado espanhol a participar em manifestações em Portugal, depois da revolução. Esteve cá, logo em 74, num concerto no São Luiz. Ficou mais tempo?
Vim mais duas ou três vezes, sobretudo nas universidades, acho que fui a Coimbra. A experiência de 1974 foi uma maravilha, estávamos como loucos a ver aquele momento de efervescência e de querer. Quando me convidaram para ir cantar a Lisboa, eu disse logo que sim. Recordo--me que me recebeu o ministro da Cultura, que era jornalista, mas não me lembro do nome. Foi a primeira vez que os “cantores perigosos” do Estado espanhol se juntaram aos portugueses num concerto. Era também um momento em que as pessoas reconquistavam os teatros oficiais, como o São Luiz, e faziam-no como momento de reconquista de direitos culturais e políticos. Para mim foi uma experiência muito marcante, muito impressionante como ato político, para além dos desastres estéticos que eventualmente se produziram (risos). Isso é outra história.
Dizia há bocado que a transição para a democracia foi conquistada nas ruas, mas também teve muitos mortos, como aqueles do massacre de Vitoria-Gazteiz [a 3 de março de 1976, as forças policiais dispararam sobre centenas de operários grevistas refugiados numa igreja, na zona operária da cidade. A ação da polícia deixou cinco mortos e centenas de feridos], falados na sua canção “Campanades a mort”. Toda essa gente que foi assassinada, como os quatro mortos e mais de 100 feridos na cidade basca de Vitoria-Gasteiz, viu satisfeitas as suas reivindicações?
A transição para a democracia não se concretizou até ao fim. A transição para a democracia não existiu. Aquilo que se imagina naqueles tempos fracassa na década de 80. Não fracassa com a UCD de Suaréz, nem depois com o Partido Popular, fracassa já com o PSOE no poder, no tempo de Felipe González. É duro reconhecê-lo, sobretudo para as pessoas, como eu, que procuram ser de esquerda.
Passa pelo facto de o governo de González se ter envolvido no aprofundamento de grupos criminosos antiterroristas como os GAL [esquadrão da morte organizado por setores do Estado espanhol para fazer atentados e execuções de elementos próximos dos independentistas bascos ou ligados à ETA] e outras coisas?
Os GAL é já a cereja no topo do bolo. Mas há desde o início comportamentos de nepotismo, a utilização dos polícias e torturadores do franquismo na repressão dos independentistas. Tudo isso foi uma prática do governo do PSOE. A transição deixou o sistema político e o aparelho de repressão da ditadura totalmente indemnes. São os torturadores da ditadura que continuam a ser premiados, medalhados e promovidos. Ainda estamos a pagar isso hoje. Veja-se o caso do sistema jurídico endogâmico, com valores grotescos, que temos hoje. Para que se entenda visto do estrangeiro, a Constituição de 78, que é a base jurídica a partir da qual se faz a chamada transição para a democracia, é feita sob a pressão das espingardas do exército. Aquela Constituição é aceite e assinada por gente de esquerda porque há um pacto, e é verdade que aquele texto, levado até ao extremo, era uma lei que permitia caminhar para uma possível democracia.
Mas o negócio não foi muito claro desde o início? Ganhavam-se liberdades democráticas em troca da indivisibilidade de Espanha. A transição não deixou sem ser abordada e resolvida a questão nacional?
A questão nacional também fazia o seu caminho. Aceita-se a Constituição porque, quando há uma democracia estabelecida, a leitura deste mesmo texto legal podia permitir ter uma democracia muito avançada. E isto é verdade. A leitura desta mesma Constituição que hoje nos proíbe uma série de coisas, se fosse feita com outra perspetiva e dinâmica, permitiria outro caminho. Havia toda uma possibilidade que se abria com o estabelecimento da autonomia para as diferentes nacionalidades. O facto de se falar em nacionalidades é importante: quer dizer que o legislador reconhecia a existência de quatro nações com autonomias e estatutos próprios e que isso permitiria desenvolver, com tempo, uma espécie de Estado federal, quem sabe mais avançado, em que todos se poderiam reconhecer.
Isso apesar de no articulado da Constituição de 78 figurar a indivisibilidade de Espanha e o exército como garante último desta unidade?
Porque a pressão das espingardas estava nessa negociação.
Mas isso podia ter mudado depois da tentativa de golpe de Estado de Tejero Molina?
Foi por isso mesmo que se assinou a Constituição. Isso juntamente com o pacto da transição .
E houve um referendo à Constituição em que a única zona que não se pronunciou maioritariamente a favor do texto foi o País Basco. Na Catalunha venceu o sim.
Para que conste, eu votei não. É preciso recordar a pressão para votar sim. É preciso perceber qual era a situação numa sociedade que tinha vivido em ditadura. Era complicado dizer que não ao único pacto que parecia possível para sairmos da ditadura, com tudo o que sabíamos que era o exército espanhol. Isso parecia o mais razoável. Embora depois se tenha verificado que não se conseguiu fazer uma total democratização. Mas esta situação é mais da responsabilidade da classe política que fez a transição do que propriamente do texto que foi aprovado.
Neste quadro de estabelecimento de uma democracia, como se explica que, há poucas semanas, uma estudante universitária tenha sido condenada em tribunal por fazer piadas no Twitter com o assassinato do primeiro-ministro da ditadura, chefe dos serviços secretos e herdeiro de Franco, o almirante Carrero Blanco?
Exatamente pelo facto de a transição para a democracia não ter ido até ao fim.
A mim parece-me irónico…
Irónico é para uma piada, isto que aconteceu é absolutamente espantoso (risos). Mas tem uma vasta linha de continuidade. Por exemplo, falávamos do massacre de Vitória, que foi um crime de Estado, ordenado pelo próprio Estado. Apesar disso, nunca o governo espanhol pediu perdão por aquilo que aconteceu às vítimas. Não foram capazes de dizer uma coisa tão simples como esta: “Como herdeiros de um Estado que cometeu uma injustiça, pedimos-lhes desculpa e perdão.” Ninguém o fez. Nem Zapatero nem González o fez. E isso não fica por aí. Recentemente, um cantor foi para a prisão porque fez uma canção contra o rei. Para mim, tudo isto é a demonstração do falhanço da transição para a democracia nos anos 80. Aquilo que hoje se passa na Catalunha é exemplo disso mesmo. Como se explica que num país como a Catalunha, que tem muitas tradições históricas e culturais, o independentismo tivesse, há seis anos, apenas o apoio de 12 % da população, e agora está nos 50%, porquê? Esta mudança prova que há uma transformação coletiva na convicção das pessoas. Elas aperceberam-se de que houve um falhanço na democratização. Aquilo por que nós estamos a lutar na Catalunha é pela democracia.
Há nacionalismos bons e outros maus? Ou são todos maus?
O problema é que a palavra foi utilizada por muita gente. E quando se fala em nacionalismo, pensa-se em Franco, Mussolini e Salazar. Mas se por nacionalismo se entende que não há países livres se os seus cidadãos não são livres, então, nesse caso, o nacionalismo torna-se uma teoria de libertação coletiva aceitável. Mas, historicamente – e houve muito interesse que parecesse assim –, o nacionalismo era uma ideia de uma ideologia parafascista. Na Catalunha, contrariamente a isso, sempre defendemos que o nacionalismo sempre foi uma teoria de emancipação coletiva das pessoas.
Por serem uma nação oprimida?
Certamente. Conhecendo a história de Portugal e a sua libertação da dominação espanhola, sabe que nós somos uma nação oprimida (risos).
Sim, e em 1640, não podendo Madrid colocar na ordem, ao mesmo tempo, as revoltas em Portugal e Catalunha, optou por intervir na Catalunha.
É por isso que o digo (risos).
Mas mesmo sendo nações oprimidas, pode haver um discurso racista e fascista. O fundador do nacionalismo basco, Sabino Arana, defendia que se os metecos [aqueles que não eram racicamente bascos] soubessem falar euskera [língua basca], os bascos deviam aprender o russo para os metecos não os entenderem.
Há muitos nacionalismos que são racistas e fascistas. Mas, na Catalunha, isso foi evitado. Hoje em dia, há muito mais nacionalistas de esquerda na Catalunha do que de direita. Porquê? Porque entendemos que não há maneira de falar em liberdades humanas se as pessoas não vivem em sociedades livres. E, para nós, isso é o nacionalismo. Sempre que falamos de nacionalismo temos de ultrapassar este preconceito. O mesmo quando se fala de anarquismo. Quando dizemos a um francês ou a um italiano o que é o anarquismo catalão, eles não o percebem. Há aqui uma história diferente. Se me pede para eu, ou uma infinidade de gente que eu conheço, definir o que é o nacionalismo catalão, eu direi que somos internacionalistas, mas não é possível sê-lo sem ter o conceito de libertação coletiva que significa a libertação nacional.
E porque não falam apenas de autodeterminação em vez de nacionalismo?
Porque é o mesmo. Eu percebo que, para si, a palavra tenha uma conotação diferente do que para nós. Para um catalão, isso significa o direito a sermos livres e definirmos o nosso futuro.
O problema do conceito é que, quando se fala de nacionalismo catalão, tende–se a fazer desaparecer aquilo que é o nacionalismo castelhano. Aquilo que é um problema de autodeterminação passa a ser um problema de haver catalães que são nacionalistas.
Sim, o maior nacionalismo que há na península é o castelhano.
É possível defender o nacionalismo quando há na Europa uma erupção de nacionalismos xenófobos e racistas?
Sim, porque nós não nos identificamos com isso. Gente como Marine Le Pen, na Catalunha, não existe. E o partido mais à direita que há, o Partido Popular, tem 11 deputados em 136. Eu percebo as perguntas como cidadão do mundo com uma linguagem, mas nós não temos essa história nem essas características. Confundir nacionalismo catalão com os movimentos populistas que acontecem por aí é um engano enorme.
Não teria de ser chamar-vos obrigatoriamente racistas. O Podemos diz-se populista, por exemplo.
Eu digo sempre que, se vivesse em Valladolid, votava Podemos, apesar de todos os defeitos que lhes vejo. Para mim, o tempo das lideranças carismáticas e messiânicas já passou à história.
Acha que é possível a ideia do Podemos de reformar Espanha?
Não acredito que seja possível reformar o Estado espanhol. Esse tempo já passou. Nós, na Catalunha, não estamos a lutar contra Espanha, mas contra o Estado espanhol e a sua forma de proceder connosco, que não vem nem de agora, nem da guerra civil, mas de há muitos séculos. É um Estado que carcome Espanha. Entendo que quem viva em Valladolid pretenda reformar Espanha. Mas nós já estamos há mais de 300 anos à espera disso. Estivemos em todas as reformas: a da i república e a da ii república Agora dizemos simplesmente: não podemos. Queremos ir embora. Nós, catalães, não queremos este desastre em que nos vemos incapazes, até porque nos cortam todas as possibilidades institucionais de o fazer.
O último processo de independência na Europa, o da ex-Jugoslávia, passou por uma guerra. Como é possível fazê–lo pacificamente na Catalunha?
As comparações não servem para nada. O processo de independência que se está a fazer não é comparável a nenhum. É a consciência democrática levada às ruas. Proibiu-nos o Tribunal Constitucional de fazer uma consulta sobre a autodeterminação e, a partir daí, todos os anos saem milhões, cada vez mais gente, às ruas.
Mas o que podem fazer se Madrid se recusar a permitir um referendo?
Se enviarem tanques para as ruas, vamos esperá-los com taças de café com leite e oferecemos-lhes. Mas o que não vai acontecer é nós deixarmos aniquilar todo o processo independentista simplesmente por causa da intimidação que nos pretendem fazer. Continuaremos o nosso caminho para a independência através de processos democráticos e pacíficos. Não conseguem impedir-nos. Se o Estado espanhol quer manter um mínimo de parâmetros democráticos, a Catalunha será independente, porque essa é a vontade das pessoas.
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Lluís Llach: “Se entrarem os tanques em Barcelona vamos recebê-los com café com leite”
O cantor e deputado considera que a transição para a democracia em Espanha falhou. E que a independência da Catalunha é inevitável. E será conquistada de uma forma pacífica e democrática