A perceção é como o código postal, é meio caminho andado. A confiança dos consumidores está em alta, as viagens florescem e as estradas voltaram a ter carros em proporções superiores à falta de manutenção dos últimos anos. Não admira que a Infraestruturas de Portugal tenha tido em 2016 mais do dobro dos lucros de 2015, 26,3 milhões de euros. Não há manutenções relevantes nas estradas do país, algumas em zonas turísticas fundamentais – não se gasta, há poupança.
Está tudo a correr tão bem que se agita a excecionalidade do défice conseguido com medidas extraordinárias como todos os outros; as cativações existem como sempre existiram; e o desemprego baixa, apesar de o perfil do emprego criado contradizer as mensagens políticas que vão sendo enunciadas. Não fora assim na empregabilidade dos jovens qualificados, precários e com baixos salários – o inverso do defendido na prosa pelo primeiro-ministro –, e esta empregabilidade conseguida seria tema de outdoor. Não fora assim no setor do turismo, alavanca fundamental do crescimento económico registado, e seria tema de infografia ilustrativa desta realidade.
Está tudo a correr tão bem que nos damos ao desplante de aplicar um simplex no que não se devia. É a linha do corte cego que conduz ao encerramento de balcões da Caixa Geral de Depósitos em muitas localidades do interior, abrindo, uma vez mais, todo o espaço à perceção de abandono de quem lá vive ou ao surgimento de oportunidades de negócios para privados. Encerra a Caixa, o Banco CTT pondera abrir balcão. Isto é, o banco público vira as costas, os privados esfregam as mãos, mesmo quando se trata de um privado responsável pelo serviço público postal, com manifesta degradação do serviço prestado nos últimos anos. O facto de a CGD ter sido parceira dos CTT na criação do projeto de serviços financeiros e de ter oferecido a marca Banco Postal aos CTT permite todas as especulações sobre estes avanços e recuos com impactos na vida das pessoas e nas dinâmicas dos territórios. Já para não falar na devassa da vida privada dos cidadãos, que continua com a concentração de serviços públicos sensíveis em entidades e funcionários sem o perfil adequado. Depois do encerramento de balcões do CTT, juntas de freguesia, floristas e mercearias passaram a ser agentes postais, a saber da circulação de correspondência e da vida dos cidadãos. Com o encerramento de balcões da Caixa e as alternativas de que se fala, acentua-se essa tendência. Já somos controlados por via digital, podem agora somar-se novas devassas.
Está tudo a correr tão bem que, apesar da verve reivindicativa, há uma coerência de domesticação política de quem apoia a atual solução governativa. PCP e Bloco estão, no essencial, domesticados, amarrados à solução, prisioneiros de um caminho trilhado de reversões q.b., austeridade light e forte ação simbólica para a perceção geral. Só assim se percebe que, afinal, na instalação de um armazém para lixo tóxico da central nuclear de Almaraz, esteja tudo bem entre Portugal e Espanha, ao ponto de ninguém piar de forma consequente; que o acumular diário de 1,5 milhões de dívida do Estado às farmacêuticas seja nota de rodapé; ou que flagrantes movimentações de protagonistas da negociação a flutuar numa pastosa confusão entre negócios e política suscitem maior indiferença do que a que gozavam os da direita no passado.
Está tudo a correr tão bem que a República até se configura à medida das circunstâncias, pessoais e políticas, sem alarido, para conceder comendas, contestar órgãos que contrariam o mainstream ou ameaçar com reconfigurações da realidade. Porque quem protestava, agora cala, por compromisso e por benefício, e quem poderia fiscalizar politicamente está preso no passado, entretido a preparar mudanças de liderança ou com a cabeça noutros desafios políticos.
Está tudo a parecer que corre tão bem que, depois da saraivada vivida entre 2011 e 2015, poucos têm vontade de contestar o momento, uns por conveniência tática, outros por inaptidão para a oposição, alguns por medo de represálias.
É o “está tudo a correr tão bem”, real ou percecionado, que legitima a reivindicação de que, se é assim, porque não se vai mais longe na reposição dos rendimentos, dos direitos e do estilo de vida do passado, como se pudesse haver despesa sem receita, distribuição sem geração de riqueza ou futuro sem preparação no presente.
Viver o momento até ao dia do “estava tudo a correr tão bem” nunca teve grande futuro.
Notas finais
Cãibras. Em boa parte da esquerda que apoia Jean-Luc Mélenchon, duas em cada três pessoas preferem, por ação ou omissão, apoiar a candidata da extrema-direita racista, ultranacionalista e xenófoba. Confundir o umbigo com as convicções políticas nunca deu grandes resultados.
Salto em comprimento. Por um dia, Portugal voltou a ser líder europeu no consumo de energia elétrica gerada pelo vento. Sementes do passado que continuam a dar boas lideranças europeias.
Corrida de cem metros. Marques Mendes voltou a aproveitar o espaço televisivo de opinião para um sprint de propaganda autárquica sintonizada com o PSD. Quis lançar dúvidas em câmaras municipais importantes, lideradas pelo PS. Se está tão focado em fazer sprints autárquicos, não se percebe porque não correu para a Câmara Municipal de Lisboa. É só bitaites e interesses.
Maratona. Qualquer exercício que pretenda contar com a falta de memória é ridículo. Depois de uma época a incendiar o futebol português, a hostilizar os adversários desportivos e sem resultados para apresentar, só faltava mesmo assistirmos ao esforço desesperado para se armar em pomba da paz. Há gente que não se toca.
Militante do Partido Socialista, Escreve às quintas feiras