Sauna, treino e batata doce. A santíssima trindade do culturismo

Sauna, treino e batata doce. A santíssima trindade do culturismo


Suar, treinar, comer, voltar a suar, voltar a treinar, voltar a comer. A rotina de um culturista resume-se a tupperwares de arroz e frango, saunas para tirar água, cardio para tirar gordura e ferro para aumentar músculo. São semanas de sacrifício que culminam na pose certa feita debaixo de uma camada de bronzeador, maquilhagem, calções…


Estava num concerto dos Red Hot Chili Peppers quando sentiu um alto no testículo. A tranquilidade com que foi à consulta acabou assim que da boca do médico saiu uma sentença em forma de sessões de quimioterapia que, de tão violentas, fazia com que sentisse choques elétricos cada vez que pegava num copo de água e o caminho do carro a casa fosse suficiente para um escaldão.

Sentado num banco de apoio ao levantamento de pesos, Miguel Rosa aponta para o mais leve e garante: “Estava de tal forma que nem aquilo conseguia levantar”. Mas foi exatamente por esse haltere de um quilo que teve que começar, num trabalho de progressão que o levou até um recente segundo lugar na categoria Men’s Fitness Tall da Wabba, acrónimo de World Amateur Bodybuilding Association, uma das maiores federações de culturismo mundial.

Só do ginásio Mr. Big Evolution, são 50 os atletas a competir atualmente, um número nunca visto em 22 anos a funcionar com a designação de “ginásio de ferro”. Sandra, gerente do espaço, ainda se lembra quando eram poucos os que arriscavam passar portas “para um sítio que se pensava ser frequentado por feios, porcos e maus”. Há 13 anos levaram o primeiro atleta a competição e ao longo dos anos, nunca foi possível ultrapassar esse tipo de participação simbólica, tendência que só se inverteu nos últimos anos e que Sandra explica com a junção de dois fatores: a preocupação em ter uma vida mais saudável e as novas categorias do fitness que vieram suavizar uma imagem “um pouco bruta” que ainda se associa a este tipo de modalidade.

Joana nunca se assustou com este mundo estereotipado como masculino e nunca se privou de frequentar as salas de musculação. Queria ter um corpo bonito e, principalmente, ter o suporte físico que sempre lhe foi dificultado pela escoliose detetada no início da adolescência. “Não vou mentir”, garante, “quando comecei a treinar tinha os objetivos de toda a gente: emagrecer e tonificar”. Isto depois de uma universidade sem regras e um InterRail que puseram fim ao corpo de quem já tinha praticado coisas tão diferentes como hóquei, natação ou andebol.

O problema de Joana foi ter levado para os treinos a determinação com que leva a vida. O excesso de exercício provocou-lhe hérnias, o que, além de “dores horríveis”, lhe deram a motivação para saber mais sobre um mundo que cada vez mais era o seu. 

Estudou, aprendeu a treinar com qualidade e, acima de tudo, aprendeu a dar descanso ao corpo. E apesar de agora se dedicar a preparar os outros para subir ao palco, também ela não fugiu a essa praxe. Em 2014, ficou em segundo lugar da categoria Bodyfitness, uma das tais categorias que Sandra apontava como uma aquelas que ajudaram a atrair novos públicos. “Neste caso, pede-se um corpo trabalhado, mas com traços pouco profundos e com um aspeto saudável”, explica a gerente. “Vá, é o chamado corpo de biquíni”, resume Joana. Tanto é que, do lado masculino, na categoria em que Miguel participou – Men’s Physique – a mítica tanga é trocada por uns calções de banho até ao joelho. “Parece que não mas isso ajuda abrir o leque”, refere Joana.

Comer por objetivo Se o menu de um culturista fosse um quadro, provavelmente viamos apenas duas cores que não o branco. Só o amarelo das gemas de ovo e o verde dos brócolos dão cor a uma ementa feita à base de arroz, batata doce, frango grelhado, peixe cozido, maçãs e claras.

Miguel vai buscar o saco ao carro, de onde tira três marmitas, o suficiente para o manter ativo até a hora de jantar. “Para o almoço tenho 300 gramas de arroz e 200 de peito de frango, a meio da tarde como 2 ovos cozidos e uma maçã e antes de treinar vão 150 gramas de batata doce”, enumera. Aqui aprende-se a comer por objetivo e não por prazer. “A comida passa a ser uma ferramenta”, explica Miguel.

A manipulação do corpo através da comida continua até ao dia da prova. Nuno e Susana, ambos com 41 anos, namoram há onze anos e competem há cerca de três anos. “Estar juntos no treino e na vida ajuda muito”, admite Nuno. “Pelo menos estamos de mau humor ao mesmo tempo”, brinca Susana. Isto porque a privação calórica, aliada a uma carga excessiva de treino causa irritabilidade e sonos pouco profundos. “É uma tortura”, garante Susana, “mas a adrenalina do dia da prova mantém-nos ativos”.

Se até esse dia Nuno e Susana bebiam, respetivamente, dez e seis litros de água – parte deles libertados em saunas feitas em jejum, logo seguidas de pelo menos meia hora de bicicleta ou passadeira – 24 horas antes de subir ao palco, água é coisa proibida. A ideia é minimizar a quantidade de líquido subcutâneo para que os músculos sobressaiam. Mas há um outro elemento – o sal – que, se por um lado ajuda a este processo de secagem, por outro dá força à escolha da palavra “tortura” por Susana para descrever o pré-campeonato. “Imagina o que é passar o dia a comer batatas fritas e não poderes beber nem um gole de água”, descreve. Talvez por isso, quando perguntamos qual a primeira coisa que fazem mal têm ordem para desfazer a pose e descer do palco, a resposta seja unânime: “Beber água!”. Bom, quase todos. Na última competição, Miguel já tinha levado na mala uma fatia de tarte de limão da Padaria Portuguesa. “Passei meses a imaginar aquilo que ia comer a seguir à prova”, admite, numa jornada que começou com nachos, teve direito a chicken wings, hambúrgueres e terminou com gelados com brownie para sobremesa. “Estava tão feliz, as minhas endorfinas estavam em altas”, conta, com uma expressão de quem já só pensa na próxima refeição livre, que vai acontecer dia 30, logo a seguir à participação no campeonato internacional de Wabba, que acontece em Londres.

O mister determinação Fernando Gonçalves prefere treinar sozinho. É vê-lo numa zona mais isolada do ginásio a alternar entre o treino de bicep e de costas. 

O corpo trabalhado afasta-o dos 48 anos que vêm no BI. “É o mais dedicado de todos aqui do ginásio”, comentam connosco, quando ainda o vemos de longe. O afinco que se nota no treino passa para tudo o que tenha a ver com o culto do corpo. “Foco-me a 100%”, garante, e é por isso que chegou ao ponto de comer no carro a sua própria comida, antes de entrar no restaurante, onde apenas fazia companhia à mulher.  Agora, apesar de mais descontraído em relação à comida, não descura da preparação que, normalmente, lhe toma um dia inteiro. “Acordo, treino, vou às compras, chego a casa, limpo as carnes, faço arroz basmati e arroz normal, cozo legumes, deixo arrefecer, peso tudo e guardo em tupperwares”, descreve. Com isto, já está o sábado passado.

Esta é uma rotina que só se consegue manter com o apoio da família. Aliás, foi para acompanhar a filha que se inscreveu no ginásio há dois anos. “Vim para incentivá-la a fazer desporto mas a verdade é que ganhei-lhe o gosto rapidamente e o bichinho da competição falou mais alto”. Treinou como nunca para esculpir um corpo que tinha chegado ao ginásio com 84 quilos. No dia da prova pesava 72,5 quilos, o suficiente para vencer na categoria de Men Rebild, aquela que premeia as grandes transformações corporais.

Apesar de dizer que “o botão da competição ainda não está desligado, deixar de subir aos palcos não o assusta. Pega no telemóvel e desliza o dedo até encontrar uma foto sua que represente um regresso a um passado pouco saudável. “Está a ver este homem? Ele é que é o meu adversário”.

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