De todos os textos constitucionais que tivemos, o vigente é sem dúvida o mais complexo dadas as vicissitudes da sua elaboração. Não apenas resulta de uma intensíssima discussão partidária e de representantes sociais em luta, num permanente conflito entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática – prevalecendo esta última -, mas também porque emerge influenciada por diversa manifestação ideológica internacional – em muitos casos, com espelho normativo – e porque rompe profundamente com a experiência constitucional anterior, tornando-se grosso modo uma Constituição-garantia de preocupação determinante com três aspetos essenciais: os direitos fundamentais dos cidadãos, os direitos dos trabalhadores e o processo produtivo, e a divisão do poder onde, por consequência, inserimos a organização política.
Mas o nosso texto fundamental é também uma tradução de um compromisso histórico para com os cidadãos naquele tempo, para com os cidadãos do futuro, tornando irrenunciáveis e, nalguns casos, irrevogáveis determinados direitos, mas, mais importante do que isso, um compromisso organizativo social em que o primado dos direitos fundamentais, na sua afirmação como direitos, liberdades e garantias, assume uma efetivação proeminente sobre os outros aspetos regulatórios e impulsionadores do direito e da sociedade. Não é por menos que a ideia de liberdade se racionaliza, em termos constitucionais, como liberdade jurídica cujo preceito esteve sempre presente no constitucionalismo português. Da Constituição liberal de 1822 aos dias de hoje e até mesmo, imagine-se, na Constituição autoritária de 1933.
O diálogo entre o Estado e a sociedade caminhou no sentido da coletivização dos direitos individuais, atribuindo-lhes, hoje, um certo estatuto positivo em que ocorrem uma multiplicidade de domínios essenciais que contribuem para a medição do seu conteúdo e que, inquestionavelmente, os envolvem em várias dimensões. Mas é errado olharmos para os direitos fundamentais com um cunho fundamentalista no sentido de transformar o seu intransigente respeito numa via potenciadora de insegurança e incerteza jurídica.
Se é verdade que a Constituição é um instrumento de limitação de poderes, não é menos verdade que ela é igualmente uma manifestação de unidade jurídica e política de reconstrução permanente por quem a interpreta e aplica, considerando a pluralidade de mundividências sociais, alicerçadas em direitos fundamentais, a que estamos sujeitos e que consubstanciam a interpretação condigna do binómio relacional entre Estado e indivíduo.
A polémica sobre a tolerância de ponto que o governo deu perante a visita da mais elevada autoridade da Igreja Católica é fruto de uma intolerância dominada por um progressismo exacerbado que cega para uma interpretação condigna de direitos fundamentais e para o sentimento generalizado de uma larga maioria dos cidadãos. E o curioso é que as vozes dissonantes vieram precisamente do espetro político que apoia este governo.
Que o deputado socialista eleito pelo círculo do Porto não consiga interpretar convenientemente o sentimento dos cidadãos que representa é um problema que eles, num sistema político de estreita ligação entre eleitor e eleito, acabariam por resolver. Que comunistas e bloquistas não se regozijem perante a medida até se considera normal, fruto da vitória sobre a liberdade revolucionária que nos queriam impor na aprovação do nosso texto fundamental.
Que a inteligentíssima deputada socialista Isabel Moreira critique ferozmente a medida, já é incompreensível. Não só pelo seu brilhante percurso académico no domínio das ciências jurídico-constitucionais como pelo seu percurso político ligado à defesa intransigente dos mais diversos direitos individuais e da sua manifestação plena no nosso ordenamento jurídico. Uma oposição feroz apenas explicável por um excessivo vanguardismo produtor de uma cegueira social inultrapassável que lhe tolda o pensamento.
Portugal não é apenas um Estado laico na medida em que não é apenas em relação ao governo que a separação confessional vigora. Nós somos um país onde o Estado é secular e é por intermédio desta característica que não se confunde todo o Estado com a religião.
Mas o que é o secularismo? O secularismo é a liberdade. É o que garante a neutralidade do Estado e dos serviços públicos mas, ao mesmo tempo, permite que cada um de nós possa acreditar em qualquer confissão no domínio da nossa privacidade. A secularidade promove um dos maiores objetivos coletivos, que é o da emancipação dos indivíduos e da sociedade. Mas secularismo é também saber interpretar o sentimento prevalecente da sociedade. E aqui, socorrendo-me da expressão, laicidade e separação entre Estado e religião não equivalem nem podem equivaler a laicismo, a irracionalidade, a irrelevância ou a menosprezo pelas vivências religiosas maioritárias da nossa sociedade, pelo sentimento que elas provocam nos nossos concidadãos, ou pela função social que elas exercem em domínios tão vastos como o ensino, a inclusão e a solidariedade. Eu, que tendo fé e admitindo que a minha visão do mundo é, nalguns aspetos, incompatível com certos dogmas da Igreja Católica, não poderia estar mais de acordo com o governo.
Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário
Escreve à segunda-feira