O referendo constitucional turco mudou de uma penada o sistema de governo, reduziu dramaticamente a separação de poderes, permitiu a normalização sem controlo do estado de emergência, enterrou a laicidade do Estado e abriu o caminho para a consagração da pena de morte. A extensão das mudanças autoriza a pergunta: para que serve uma constituição? A existência de constituições formais, com mecanismos de revisão constitucional exigentes, seja pelas maiorias qualificadas, pelo tempo da revisão ou pelas matérias insusceptíveis de revisão, parece desadequada aos tempos de hoje. Tempos de populismo, de comunicação política com a leveza de um tweet, do imediatismo do sound bite, da gratificação imediata das necessidades políticas fabricadas pela televisão emocional… Uma constituição formal, não revogável a todo o tempo por telechamada, será um anacronismo?
As constituições não são eternas, sofrem revisões, mutações e rupturas. Mas, enquanto estão em vigor, obrigam ao respeito do seu conteúdo normativo por parte de todos os atores constitucionais, por mais democraticamente legitimados que se considerem. A título de exemplo da utilidade de uma constituição, basta recordar o lento processo de aprendizagem forçada da mecânica constitucional por parte de Trump. Ou, mesmo sem constituição em sentido formal, a surpreendida descoberta, por parte de Theresa May, de ter o Reino Unido, ainda, um sistema de governo parlamentar, pelo que Westminster tem uma, muitas, palavras a dizer em matéria de formalização e de concretização do Brexit.
O texto constitucional integra o perímetro do que não pode nem deve ser decidido por maioria simples. Numa visão simplista, uma constituição é, por natureza, antidemocrática e visa subtrair à regra da maioria, pelo menos da maioria simples e da sucessão conjuntural de diferentes maiorias simples, um conjunto de matérias consideradas demasiado importantes para serem por elas manipuladas. A lição da história dos conflitos sociais e políticos recomenda que haja um mínimo de matérias consensualizadas que sejam subtraídas às decisões de maiorias circunstanciais. Muitas dessas matérias estão hoje blindadas por via internacional, seja pelas convenções internacionais em matéria de protecção de direitos fundamentais, seja pela ação de organizações internacionais que monitorizam e fiscalizam o cumprimento de determinados conteúdos político-jurídicos por parte dos Estados-membros (maxime, o Conselho da Europa e a União Europeia, com destaque para as respectivas instituições jurisdicionais).
Os referendos com resultados tangenciais ameaçam o texto constitucional (Turquia) ou a permanência em organizações internacionais (Reino Unido). Depois do Brexit em relação à UE, o Turkxit, provável em relação ao Conselho da Europa. No caso do referendo turco, a contestação aos resultados por parte da oposição e a crítica da OSCE e do Conselho da Europa ao facto de 2,5 milhões de votos corresponderem a boletins não autenticados pela Comissão Eleitoral (Erdogan ganhou o referendo por uma margem muito inferior) deixam quase metade dos votantes (com 85% de participação) confortados pela possibilidade, pelo menos formal, de contestar os resultados do referendo. No RU são as eleições antecipadas para 8 de Junho que se podem transformar, ironicamente, num reforço do peso parlamentar dos remainers, minando a legitimidade referendária dos brexiters.
A democracia representativa tende a perder o combate democrático a favor dos referendos ou, pior, dos plebiscitos. De caminho é preciso que não se perca a democracia. Nem a ideia de constituição.
Escreve à sexta-feira