Regresso ao Futuro: ao lado das máquinas e na frente de todas as guerras

Regresso ao Futuro: ao lado das máquinas e na frente de todas as guerras


O futurismo italiano marcou a eclosão das vanguardas históricas no século passado, e na sua exaltação da tecnologia, da juventude e da violência, influenciou de forma profunda as artes em todo o mundo e o próprio modernismo português


É este o futuro que outros tatearam nas suas inspiradas ou delirantes visões, está feita a dobra, eis o tempo da vertigem absoluta. A época temida por muitos, ambicionada por um bando de desordeiros, alguns deles geniais. Estes davam as boas-vindas a uma nova era cuja velocidade e dinamismo se mostrassem capazes de vencer a própria sensação linear do tempo. O instante já não pingava até encher alguma medida para ser sucedido pelo seguinte. Agora explodia num feixe de simultaneidades.

Mais de um século volvido sobre a eclosão dos movimentos vanguardistas, hoje talvez sejamos cada vez menos a entusiástica prole daqueles que quiseram romper com a cultura clássica e ‘passadista’, largar a bagagem do Renascimento para celebrar a tecnologia e juventude, “exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro”. Foi um jornalista e publicitário italiano, um sensacionalista com fenomenais dotes para a autopromoção e a sofisticação literária para bancar a sua atitude intempestiva, de nome Filippo Tommaso Marinetti, quem fez publicar na primeira página do diário parisiense “Le Figaro” – edição de 20 de fevereiro de 1909 – o “Manifesto de fundação  do futurismo”. Hoje, o futuro parece cada vez menos uma inspirada projeção de um génio artístico, e cada vez mais um desastre para o homem, cabendo às máquinas organizar o caos. 

Na idade mais próxima do tempo idealizado pelos futuristas, eis-nos mais nostálgicos que nunca, uma geração em parte expropriada do tempo, em parte dominada por ele. Apressada; extenuada. Somos assim os que sentiram tombar os velhos relógios da sala de estar. As horas e os minutos tornaram-se demasiado relativos, e o próprio segundo foi estendido e aberto, dividido em micro parcelas que só as máquinas estão em condições de dominar. 

Como já foi notado, mais do que uma filosofia, o futurismo marcou uma atitude, radical em tudo. Quando Marinetti, entre as premissas do seu manifesto, afirma que “já não há beleza senão na luta” e que “nenhuma obra que não tenha uma caráter agressivo pode ser uma obra-prima”, fica claro que doravante interessa antes de tudo inflamar até ao ódio o desprezo pelo passado e os seus exemplos. Os sentidos agora devem estar despertos para “uma beleza nova”, tudo o que é expressão do aceleramento, já não os frutos pacientemente apurados, mas as riquezas conquistadas pela técnica, com aplicações industriais. Como refere a especialista em estudos sobre o futurismo, Rita Marnoto, citando José António Bandeirinha, “enquanto o darwinismo aviva a consciência de que o homem é descendente do macaco, o futurismo incita, programaticamente, à fuga desse passado através da velocidade e do dinamismo: ‘o homem apanha comboios a vapor, depois a gasóleo, depois elétricos, depois aviões a jato, transportes cada vez mais rápidos para fugir à condição de descendência do macaco. Quanto mais rápido viajar, mais distante fica essa fatal constatação, quanto mais rápido se fizer transportar, mais longe caminhou na fuga dessas origens e mais honrosas se tornam as diferenças relativas a essa condição ancestral’”.

Assim, Marinetti vai atrelar os valores estéticos da sua revolução aos avanços industriais de então, e no seu louvor ao “homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita”, extravasa a ambição de novos horizontes artísticos, para assumir controversas posições políticas. Se é enfático no desejo de espezinhar as convenções, derrotar as escolas, e fala em destruir “os museus, as bibliotecas, as academias de todo o tipo”, vai mais longe, glorificando a guerra como “única higiene do mundo”, e ataca a luta feminista através de invetivas declaradamente misóginas. 

Se, esteticamente, o futurismo italiano alcançou aberturas decisivas e veio a servir de referência a todos quantos se organizaram do lado das vanguardas, num efeito de rutura, por outro lado, politicamente foi sempre reacionário, sendo dolorosamente ambíguo o seu contributo para o modernismo. Os futuristas congratularam-se com o advento da Primeira Guerra Mundial e muitos foram a correr alistar-se, esperançosos de que marcasse uma viragem, pondo fim aos decadentes laços com o ideal da Roma antiga, catapultando-a para uma renovação, marcada pela vertigem de um presente em constante transformação.

A par de um glorioso e provocante arranque, este movimento, que assumiu repercussões à escala planetária, teve a sua própria herança manchada pelo apoio fervoroso do seu fundador ao fascismo, acabando Marinetti por colocar os seus dotes de propagandista ao serviço do aparelho de Estado. Integrando o círculo íntimo de Mussolini, e tendo inclusivamente feito campanha para que o futurismo fosse declarado o estilo oficial do país, Marinetti acabou por confirmar as suspeitas de que faltava não apenas convicção como substância às críticas do futurismo. A sua poética, que buscara inspiração no “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, abarcando na sua proposta todo o leque dos diversos campos artísticos, veio a revelar-se afinal uma sucessão de golpes publicitários, adotando a direção do vento que a qualquer momento soprasse com mais força. De tal modo que, no fim, e arruinadas as perspetivas de uma carreira política, Marinetti terminou a sua vida como académico.

Dito isto, não seria justo descartar a enorme influência que teve o Futurismo italiano. Tratando-se da primeira vanguarda histórica, coube-lhe desencadear uma libertação numa série de meios artísticos, lançando as bases para muitos dos avanços que obrigaram a arte a tornar-se uma expressão sensível e fortemente questionadora ou crítica do seu tempo. Depois de ter-se iniciado como uma proposta subversiva no campo da literatura, anunciando uma implosão “das regras da gramática e da sintaxe na celebração dos sons e sensações de um mundo tecnológico futuro”,  a este primeiro manifesto sucederam-se outros, adaptando aqueles princípios a outras formas artísticas, influenciando de forma indelével expressões que vão das artes plásticas à música e ao cinema, teatro, moda, fotografia, arquitetura e urbanismo.

Em Portugal, também o futurismo teve repercussões, e, contra o que é habitual, chegou muito atempadamente. Havia então emissários que, a partir de Paris, traficavam todas as ondas que pudessem provocar algum escândalo no asfixiado mundo português. Mas se o seu sismo teve réplicas eficazes entre nós, e foi matricial para o grupo d’Orpheu, teve a sua apoteose há precisamente um século, e um ano mais tarde sofreu um golpe fatal, não tendo sido mais do que um feliz prenúncio, sem acompanhar o desaire e a desgraça do movimento italiano.

Em 1917, Almada Negreiros, que em tanto do que fez enquanto poeta não passou de um epígono de Marinetti, proferiu a primeira Conferência Futurista, a 14 de maio desse ano, lendo o seu “Manifesto Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”. Depois, por sua iniciativa e de Santa-Rita Pintor, assinalou-se a formação do Comité Futurista de Lisboa, e, em novembro, foi lançada a revista “Portugal Futurista”, logo apreendida pela polícia por considerá-la uma publicação de caráter provocatório, que gerou polémica e escândalo. Bons tempos em que havia ainda a necessidade de censurar fosse o que fosse por não faltarem os espíritos com amor suficiente pelo perigo, e para quem a poesia e as artes assumiam algum compromisso com o resto das coisas que andamos cá a fazer.

Depois o calendário voltou a página, e a morte prematura de duas das figuras centrais do movimento português – Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor -, e a dispersão de outros protagonistas, significou o fim a tempo. Ficaram alguns textos, como “A Cena do Ódio” e “O Manifesto Anti-Dantas”, de Almada Negreiros, “Manucure e Apoteose”, de Mário de Sá-Carneiro, “Ode Marítima” e “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos, publicados em 1915 e hoje não menos admiráveis, não menos expressivos, ainda que radicalmente datados na sua carga de ilusão quanto a qualquer revolução que viesse por ali. 

Da era da técnica, olhamos para trás como quem acena a essa juventude ingénua que desejou um futuro que nos condena à velhice cada vez mais cedo.