Em entrevista recente, o bastonário da Ordem dos Médicos, a respeito dos propósitos legislativos e do debate sobre a eutanásia, disse que “uma pessoa pode ter o direito de querer morrer, mas não pode ter o direito de pedir que a matem”. Disse também que o debate é precoce, pois há muito por fazer ou considerar no que respeita à equidade no acesso à saúde, aos cuidados paliativos ou ao testamento vital. Quando li uma coisa e outra, disse para mim que não concordava. Guardei a entrevista e, dias depois, voltei lá, e à segunda tive a certeza de que não concordava com parte do que ali dizia o bastonário, mas quanto à outra parte tenho dúvidas. Vamos, pois, por partes.
Não concordo que o debate seja precoce por haver muito a fazer ou a considerar no que respeita à equidade no acesso à saúde, aos cuidados paliativos ou ao testamento vital. São coisas diferentes, e a perfeição naquelas matérias não elimina a questão da eutanásia, ao contrário do que, às vezes, alguns querem fazer crer, sobretudo em matéria de cuidados paliativos, como se estes, levados ao limite do melhor possível, eliminassem a questão de saber se, por exemplo e simplificando, um doente incurável tem ou não o direito de obter ajuda de outra pessoa para colocar termo à vida, sem que esta pessoa seja sancionada. Por mais e melhores cuidados paliativos que haja, por mais equitativo que seja o acesso à saúde, esta questão permanecerá sempre e reclama uma resposta, individual e coletiva, esta através dos mecanismos da representação democrática. A minha resposta é sim, e em nada conflitua com isso eu também responder com uma sonora afirmativa às questões de saber se há que investir em cuidados paliativos ou na equidade no acesso à saúde, et cetera.
Quanto à outra parte do que o bastonário disse, a minha concordância ou discordância depende de saber exatamente o que quis dizer. Se foi o que literalmente resulta da frase, então não concordo, e acho, aliás, que há contradição no que afirma, pois nesta matéria vale pouco ou nada reconhecer o direito a morrer, sem que ao mesmo tempo se reconheça o direito a pedir ajuda para isso. Coisa diferente é ter o direito a esperar que os outros sejam obrigados a atender o meu pedido, e se o que o bastonário queria dizer era que ninguém pode ser obrigado a ajudar na morte contra sua vontade, então tem o meu acordo. Mas há que ter especial cuidado com as palavras. Coisa que, aliás, alguns entusiastas fraturantes das liberdades em matéria de eutanásia também têm pouco, caindo em exageros que são errados e contribuem para descredibilizar o núcleo essencial da sua causa. Se o bastonário queria acusar estes desmandos de linguagem e de pensamento, então nisso tem o meu acordo. O segredo está no equilíbrio, sem moralismos ou paternalismos, mas também sem exageros libertários, porque o tema é muito sério e delicado. Ninguém tem a razão toda e ninguém pode querer impor nada a ninguém, sobretudo a quem se encontra num sofrimento que conduz a querer morrer.
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