Silêncios que nos destroem, ações que nos matam


Desde 2011 que o conflito sírio provocou mais de 300 mil mortos. Desde 2011 que a comunidade internacional participa num jogo de troca de culpas que nada resolve


O ataque com armas químicas contra a cidade de Khan Sheikhun, no norte da Síria, que provocou mais de 80 mortos, entre os quais mais de 20 crianças e um número ainda indeterminado de feridos, foi mais um episódio na história dos sucessivos crimes que vêm a ser cometidos no conflito da Síria.

Desde 2011 que o conflito sírio provocou mais de 300 mil mortos e um elevado número de feridos, deslocados e refugiados. Desde 2011 que a comunidade internacional assiste e participa num jogo de troca de culpas que nada resolve e tudo encobre e tudo permite, sempre à custa da vida de inocentes. São sequências de crimes que acabam por nunca ganhar um rosto nem autor declarado, mas que resultam sempre e invariavelmente na morte de civis inocentes e no agravar da total desumanização de que aquele povo insistentemente tem sido alvo desde há seis anos a esta parte. A utilização de armas químicas constitui uma violação inaceitável da Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas e um novo reflexo da barbárie da qual a população síria é vítima há tantos anos, acabando por revelar o que existe de pior na espécie humana.

Este ataque bárbaro não pode passar mais uma vez em claro e a comunidade internacional não pode continuar, de acordo com interesses e conveniências geográficas ou económicas, impávida e serena a fechar os olhos a tais demonstrações de indiferença pelo valor da vida humana, pelos mais básicos direitos humanos e pelos direitos das populações imperativamente consagrados no direito internacional.

Ainda que seja absolutamente inquestionável e necessário colocar-se um travão neste sangrento conflito, cujas consequências extravasam os evidentes problemas humanitários daquela região que, por consequência, contaminam também a Europa em especial e o mundo – veja-se a origem deste neofenómeno migratório –, a resposta norte-americana, unilateral e ao arrepio de qualquer base legal, é um motivo de especial preocupação. Em primeiro lugar porque revela uma incoerência gritante no que toca à orientação de política externa que Trump vinha defendendo, em especial no que toca a este conflito em particular, e nunca é bom que a maior potência militar do mundo seja imprevisível na condução da sua política externa, pela própria sensação de insegurança global que gera. Em segundo lugar, porque a ação militar em si, com o lançamento de 59 mísseis, constitui ela própria uma ação clara de violação do direito internacional, pois não obteve autorização do Conselho de Segurança da ONU, e até mesmo do seu próprio direito interno, uma vez que necessitaria de autorização do Congresso americano.

Bem podem Trump e a sua administração dizer que atuaram em nome de uma “proteção humanitária” necessária, mas o contexto e a caracterização da operação militar desencadeada rapidamente desmontam o seu débil argumento. A ação de Trump não se enquadra no “Responsability to Protect (R2P)” esta norma emergente do direito internacional que, em traços gerais, pode entrar em ação quando se encontram esgotadas todas as medidas diplomáticas na resolução de um determinado conflito ou quando o Conselho de Segurança da ONU se encontra num impasse, ou bloqueio, em relação a ele, e que serve, através de ações militares de baixíssima densidade, sobretudo para criar zonas de segurança humanitária para prevenir, diminuir ou terminar com violações de direitos humanos e proteger as populações dessas violações. A ação dos EUA não é R2P. É uma violação do direito internacional.

Mas isso não invalida que o regime de Al-Assad e os seus aliados internacionais – Rússia e Irão – usem o seu poder de bloqueio, a Rússia em particular, para impedir a intervenção das Nações Unidas no apuramento cabal da responsabilidade da atrocidade e da barbárie que consubstanciou aquele ignóbil ataque químico, cujas imagens nos causaram evidente repugnância. Esse bloqueio constitui igualmente uma violação grosseira de direitos humanos e do direito internacional.

É igualmente evidente que este conflito tem consequências no contexto europeu de segurança. Este neofenómeno migratório que assola a Europa, oriundo daquela zona do globo, pôs a nu as fragilidades europeias no que respeita à sua política global de segurança e de integração. De nada serve à Europa abrir as suas portas a quem foge do terror, da guerra e da morte se nela não encontra condições dignas de sobrevivência e de integração. Veja-se o que se passa na Grécia, na Hungria, em Itália (ou até na Sérvia) com os refugiados. Ainda que não exista relação direta entre os ataques terroristas de que a Europa tem sido alvo e este fenómeno, da sua incapacidade de integração já não podemos dizer o mesmo. A Europa, a par da sua crise económico-financeira, vive um problema grave de segurança que se intensifica porque, não sendo um conjunto de Estados federados, as prioridades e opções geoestratégicas dos Estados que a compõem são diferentes e, nalguns casos, fruto de relações económicas e estratégicas antagónicas. Isso traduz-se em dois problemas fulcrais e altamente evitáveis: a falta de confiança entre Estados na partilha de intelligence que permita uma política global de combate ao terrorismo e a estes novos fenómenos de criminalidade organizada e – o mais evidente – o velho problema político da ausência de uma liderança europeia clara que defina desígnios concretos e opções estratégicas objetivas na prossecução do seu aprofundamento.

 

Deputado. Escreve à segunda-feira