A União Europeia comemorou 60 anos em Roma, no fim de semana passado. Podemos andar muito desiludidos com a Europa. Concordamos que podemos fazer mais e melhor juntos. Mas essa admissão de imperfeição não tira nenhuma bondade ao projeto político mais ambicioso que os europeus alguma vez puseram de pé. E que, pelo menos, garantiu a paz, a liberdade e a prosperidade dos povos europeus nas últimas seis décadas. Isto só é coisa pouca para quem deixou de ler livros de história ou para os saudosos de um passado de nacionalismos agressivos ao serviço de irrepetíveis sonhos de grandeza imperial.
Enquanto os líderes políticos preparavam a declaração que aponta os caminhos difíceis para uma união a várias velocidades, em Portugal e em França os extremos faziam figas pelo capotamento do projeto europeu.
Marine Le Pen é da extrema-direita francesa. Catarina Martins é da extrema-esquerda portuguesa. As duas mulheres falam claramente a mesma língua: dizem ser intérpretes do povo, gostam de falar pelo povo e é em seu suposto nome que pedem o desmantelamento da União Europeia. E Jerónimo de Sousa, que é comunista ortodoxo, segue um guião com muitas parecenças.
“A Europa vai morrer porque as pessoas já não a querem mais”, exclamava Marine le Pen em Lille, incendiando a plateia de eurocéticos no domingo. “É urgente preparar o país para o cenário de saída do euro ou mesmo do fim do euro”, decretava Catarina no mais soturno ambiente da sede do Bloco no mesmo dia. Políticos como Marine e Catarina podem encenar as divergências políticas que bem entenderem. No essencial são irmãos gémeos: a sociedade aberta sucumbe perante a sociedade fechada, a reforma cede à revolução, o individuo deve ajoelhar-se perante o Estado.
Percebe-se o ódio à Europa: ela é um dos maiores obstáculos à concretização da visão iliberal da sociedade que estes partidos preconizam. Mário Soares, que guiou Portugal à CEE, percebeu isso e, desde a primeira hora, procurou blindar a democracia portuguesa dos populismos de pendor totalitário através da adesão ao clube europeu. Custa a perceber, por isso, como é que um partido historicamente europeísta como o PS ainda governa o país apoiado no PCP e no BE. Dois partidos que têm como objetivo prioritário desfazer a Europa e o Euro para, em alternativa, instituir uma economia de inspiração soviética ou chavista – com os tristes resultados que conhecemos. Mata-se a Europa primeiro, o país logo a seguir. Embora a ordem dos fatores seja irrelevante.
Outra das coisas que une os extremos é a defesa do incumprimento dos tratados e das obrigações nacionais. Repare-se como PCP e BE nem sequer deixaram António Costa festejar 2,1% de défice. Ainda o governo estoirava foguetes e já comunistas e bloquistas buzinavam com a reestruturação da dívida. Coisa, de resto, para a qual o governo não tem posição – apesar das simpatias de parte do PS que está a trabalhar com o BE no relatório sobre a sustentabilidade da dívida. Como o Governo tem de manter a sua esquerda por perto, e ao mesmo tempo não pode deixar de ser bom aluno em Bruxelas nem dar razões à DBRS para baixar o ‘rating’ do país, a ambiguidade de todas as soluções em aberto é o melhor compromisso.
Compreendo que PCP e BE possam sentir-se enganados. É um sentimento generalizado. Toda a gente pensava, e eles também, que o governo que apoiam ia ser o pai do maior crescimento em democracia (‘virar a página da austeridade’, lembram-se?). Só que afinal, e bem vistas as coisas, o governo das esquerdas é pai, mas do défice mais baixo desde a ditadura. António Costa foi além da troika com o apoio de Jerónimo e Catarina. António Costa deixou os transportes públicos na miséria, os hospitais à beira da rutura e as escolas a meter água com a bênção de Catarina e Jerónimo. Nunca devemos menosprezar a capacidade da esquerda lírica dar umas boas cambalhotas.
A obsessão pela dívida é cada vez mais uma forma de BE e PCP expiarem os seus pecados e serem ouvidos entre os fiéis.
É que só assim se explica que tenham voltado a falar de ‘haircuts’ no mesmo dia em que a Caixa Geral de Depósitos faz uma colocação de dívida no mercado. Como que a dizer aos investidores: “vá, ponham lá o dinheiro na CGD que a gente depois pensa se paga.” Quem vai pagar são os portugueses, e não é pouco, um juro a roçar os 11% que vai diretamente para os bolsos dos hereges ‘hedge funds’, numa operação feita no Luxemburgo, um conhecido paraíso fiscal. A operação faz parte do programa do Governo para a recapitalização e reestruturação da CGD que, entre outras medidas, levará o ‘banco público’ a fechar 180 balcões e despedir 2000 trabalhadores. Mas sobre isso o PCP e o BE falam baixinho.
Ia dizer que nunca devemos menosprezar a capacidade da esquerda lírica dar umas boas cambalhotas. Mas já tinha dito isto, não foi?
Escreve à quarta-feira