Na celebração dos 60 anos do Tratado de Roma é indiscutível considerar que a sua realização permitiu alterar de forma duradoura o quadro de relacionamento entre os países da Europa ocidental e, no termo da Guerra Fria, criar um quadro de referência que orientou a transição para a democracia dos países de leste, bem como a evolução para uma economia de mercado que, invariavelmente, foi acompanhada de um processo mais ou menos desenfreado, e nalguns casos pouco ponderado, de integração que transfigurou de forma quase irreversível este velho continente.
Por oposição ao fratricídio da guerra e aos nacionalismos exacerbados, este curto caminho, embora de perceção longa, promoveu uma UE como um espaço de paz, de progresso económico e social, de liberdade, segurança e justiça, com forte pendor para o respeito pelos mais elementares direitos fundamentais. Mas a linha entre a utopia e a concretização dos pressupostos fundacionais desta grande organização social, económica e política é demasiadamente ténue e, não raras vezes, confundível.
Quando, na década de 70 do século passado, Kissinger perguntou “A Europa? Qual é mesmo o prefixo do telefone?”, não nos passaria pela cabeça, ao longo do seu processo de construção e aprofundamento, que a sua ironia dava lugar a uma certa realidade insofismável. A Europa “construída” a partir de Roma é uma Europa muito diferente daquela que cobriu o seu espírito fundador e o seu objetivo político-normativo primacial. O percurso preencheu-se de burocratas e tecnocratas que, em nome de interesses particulares e egoísticos dos Estados, ou de certos Estados, repavimentaram a estrada das decisões europeias, sobretudo as mais difíceis e dirigistas do seu povo, com o intergovernamentalismo em detrimento do método comunitário onde, por maioria de razão, o interesse particular se sobrepôs ao interesse geral e comum de todos. Não é, por isso, de espantar que, 60 anos volvidos, os danos, numa perspetiva solidária e de coesão social, política e económica, sejam evidentes. Mais: a desenfreada propaganda do crescimento, já em si próprio frágil face à metodologia de decisão e, sobretudo, do alargamento do seu bloco de nações de 15 para 27 em apenas três anos destapou a terrível e condicionadora impreparação de alguns deles, sobretudo no que se refere a um efetivo respeito pelas regras dos tratados, bem como pelos valores que recolhem.
Não estão em causa os méritos que a EU, ao longo da sua história, conquistou para si e para todos nós. A consolidação democrática, a proteção de direitos fundamentais, uma certa atividade colegisladora dos povos através do Parlamento Europeu, um espaço de liberdade, segurança e justiça, a cooperação entre membros no combate à criminalidade organizada e ao terrorismo, a abertura do espaço europeu e da livre circulação de pessoas e bens, e a sua afirmação como um dos atores principais no de-senvolvimento global, constituem motivos de orgulho e plena satisfação que nos devem forçar a lutar para prosseguirmos o aprofundamento destes objetivos.
Mas prosseguir o aprofundamento de objetivos não significa prosseguir o mesmo caminho. Prosseguir o mesmo caminho é caminhar para o desbaratamento, e muito provavelmente para o fim, de todas as boas conquistas que fazem desta grande nação europeia um espaço de identificação multicultural pleno. A Europa, para além de um evidente mudar de rumo, necessita de uma profunda e cuidada reflexão.
São vários os cenários possíveis e todos eles muito diferentes nas suas ambições. Há, contudo, uma realidade indesmentível. A Europa enfrenta problemas estruturais profundos a que urge dar uma resposta rápida. A permanente crise financeira, o problema da imigração e dos refugiados, os problemas de segurança e destes novos fenómenos de terrorismo agravam as inquietações das sociedades europeia e abrem caminho aos populismos, que acabarão por retomar o poder e as mentes tal qual o fizeram há décadas atrás e que estão na base do combate aos fundamentos que exaltaram Roma. Há, hoje, uma ausência de vontade esclarecida que se torna gravemente evidente e que vai enfraquecendo a projeção global dos seus valores. A UE não tem ainda os meios necessários para dar resposta aos desafios que lhe são colocados. Não os tem formalmente mas, pior, não os tem nas mentes que a lideram, conforme se constatou recentemente com as tristes e infelizes declarações do presidente do Eurogrupo. Precisa urgentemente de os ter para retomar o seu caminho de consolidação das suas conquistas mas, não menos importante, de um verdadeiro aprofundamento de igualdade, coesão e solidariedade entre Estados. O debate, hoje, é sufocado entre nacionalistas e europeístas, e a tónica incide sobre um aspeto essencial: devemos ou não, em nome de um projeto europeu forte e verdadeiramente coeso, sacrificar alguma da nossa soberania para conseguirmos os resultados políticos, económicos e sociais que Roma induziu?