Helder Macedo. Camões & (a melhor) companhia literária

Helder Macedo. Camões & (a melhor) companhia literária


O novo livro de ensaios de Helder Macedo segue a mais alta linha de cumes da nossa literatura, de D. Dinis a Herberto Helder, imprimindo-lhe um olhar de inovação renovada


O novíssimo volume de ensaios de Helder Macedo, “Camões e Outros Contemporâneos”, traz na capa o selo da Editorial Presença e no título o nome da figura que há várias décadas acompanha o escritor, professor catedrático jubilado do King’s College, em Londres, onde até 2004 foi titular da celebrada Cátedra Camões. Se no campo do ensaio essa presença é manifesta, quase avassaladora, já nos outros géneros que o autor pratica – a poesia, o romance, a crónica – o vate surge de modo mais discreto, ora em títulos e epígrafes onde marca o seu lugar tutelar, ora em fugazes aparições textuais sempre significativas.

Mas um tal título, de ambiguidade deliberadamente não resguardada, sugere também um ethos, um modo de ser ensaísta, apto a desarmar ideias feitas e a destituir as formas preguiçosas de pensar. 

Inimigo do estereótipo e das “mitificações rectrospectivas”, Helder Macedo não prescinde de uma musa pouco dada a convencionalismos, que gosta de se mover na órbita do desafio, um tudo-nada irreverente e a recusar tanto o pronto a vestir como a etiqueta, por vezes difícil de remover, em que são pródigos os arrumadores da literatura. Nada deve, portanto, à musa pomposa, enfadonha e… estéril de certo discurso crítico académico, cheio de amabilidades de linguagem e reverências mas também daquela aridez de vácuo que tantas vezes redunda em afastamento e perda de leitores, aspeto não propriamente menosprezível nestes tempos de consumos culturais cada vez mais rarefeitos.

Se percorrermos o índice do volume, alheio à vertigem da novidade, verificamos que pouco lhe falta para ser uma espécie de História Crítica da Literatura Portuguesa, a que se tivessem acrescentado sugestões renovadoras, como a que propõe adaptar à literatura o conceito de “escola” usado na pintura, o que permitiria aceitar a ideia de uma “escola bernardiniana” e salvar assim bons poemas de autoria ignorada ou controversa; parágrafos radicalmente novos; irónicas tiradas de sabor antológico, testemunhos autobiográficos e até capítulos de atrevimento, aparentemente pouco zelosos da imagem e da reputação literária dos grandes perenes da nossa literatura, que parecem apostados em comprometer o seu estatuto mítico. 

É o caso do capítulo “Camões: o imaginário da malandragem”. Aqui, Helder Macedo ocupa-se, não do cantor máximo das glórias de Portugal, respaldado num plano de grandeza estereotipada, de intocabilidade, mas de um Camões desfalcado de nobreza, do “boémio da “malandragem”, mais Macunaíma do que herói épico com uma coroa de louros na cabeça”. O que nos é proposto, na verdade, é um exercício do olhar: habituado a um movimento de elevação, a ter de trepar aos píncaros para poder contemplar a encarnação do patriotismo – Camões, tornado mito, todo monumentalidade – o nosso olhar é forçado a um movimento de abaixamento, até ao nível do solo, para poder ver um Camões humano que nas Cartas que deixou, de uma obscenidade hilariante, faz o testemunho direto da sociedade em que viveu.

O Camões nosso contemporâneo foi, como escreve o autor, “um poeta mais da dúvida que da convicção, da rotura mais que da continuidade, da experiência mais do que da fé, da imanência mais do que da transcendência, de uma sexualidade indissociável da espiritualidade do amor.” 

Este livro, que parece ter no horizonte o ideal de um ensaio amenamente conversado, sem sobrancerias nem pedanterias, próximo do leitor, abarca oito séculos de literatura portuguesa: D. Dinis, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Fernão Lopes, António Vieira, Eça de queirós, Cesário Verde, Fernando Pessoa e outros menos historiáveis, como Manuel de Castro, percorrem estas páginas, avessas a vias de sentido único. Não se trata de uma caterva de mortos ou daquilo a que o crítico norte-americano Frederic Jameson chamou uma “massa de clássicos mortos”, mas de um núcleo de autores com quem Helder Macedo tem vivido, mantendo com cada um deles um trato íntimo, a ponto de os transformar em presença viva e atuante, espécie de fermento ativo.

Quer converse com Sá de Miranda, a quem dá generosamente a fala, logo detalhadamente comentada, com Camões, Eça ou Manuel Teixeira Gomes, Helder Macedo revela sempre um conhecimento profundo do interlocutor, do contexto histórico-cultural em que este se moveu, imprimindo aos cenários de enquadramento que traça a sensação de concreto, de texturado, de habitado, a que se junta uma preocupação revitalizadora. 

Significa isto que, na prática, Helder Macedo faz do ensaio uma forma de Colóquio, elevado e aberto, envolvendo os grandes criadores literários que o precederam ou que foram efectivamente seus contemporâneos, como os poetas do Café Gelo. A ideia de cânone encontra-se, aliás, muito presente neste volume, refletindo parâmetros de exigência que se aplicam aos ditos interlocutores e a si próprio.

Esta conversa, que tantas vezes fere a nota coloquial, sem nunca perder a elegância da formulação nem uma rigorosa capacidade de enfoque, incide sobre diversos assuntos – o Portugal do passado, do presente e o do por vir, a identidade e suas ficções, o feminino, os “actuais carlitos das maias”, os perigos da sátira e da auto-ironia, tão própria de quem se procura naquilo que procura -, ilustrando a ideia de que a escrita ensaística pressupõe um convívio direto, feito de tempo, de capacidade de análise, de atenção aos interstícios e de constantes revisitações.

A conversa incide por vezes sobre a própria literatura, as suas limitações – por exemplo, raramente ser capaz, ao contrário da música, de dar em simultâneo significações diversas ou contraditórias, excepção feita a Camões, um autor nunca encerrado nos capítulos que lhe são dedicados; os seus velhos recursos, nem sempre assim considerados. Há recursos que estão longe de ser novos “e não são apenas pós-modernos”, como sublinha o autor, “ou então os Livros de Linhagens medievais e Os Lusíadas seriam obras pós-modernas por articularem o factual e o mítico, e autores pós-modernos teriam sido o Bernardim Ribeiro disfarçado na sua personagem Bimarder na Menina e Moça e o Almeida Garrett dissociado do seu alter ego Carlos nas Viagens na Minha Terra.” Mas também se fala da literatura enquanto fenómeno de engenho e de arte, de invenção e de oficina. 

A capacidade articuladora da reflexão, a naturalidade exemplar do estilo fluente de Helder Macedo, o entusiasmo e a generosidade intelectuais, contam-se entre as boas qualidades que recomendam este “Camões e Outros Contemporâneos”.