Make food not war. Quando o húmus  é arma de integração

Make food not war. Quando o húmus é arma de integração


Uma equipa de refugiados assume o comando da Cozinha Popular da Mouraria para dar a conhecer a comida da Síria, Iraque e Eritreia. Marcelo Rebelo de Sousa foi convidado especial deste banquete feito de pão árabe, húmus, beringela e kebabs


Nizar trabalhava como chef de cozinha em Damasco. Talvez por isso o ar calmo e o tom de voz baixo que mantém nos dias em que assume as rédeas Cozinha Popular da Mouraria, mesmo que na sua equipa não estejam os ajudantes a que estava habituado, mas sim jogadores de futebol, militares e costureiros. Em comum têm o facto de terem chegado a Portugal há poucos meses, como forma de escapar a uma Síria, Iraque ou Eritreia que já pouco tinham do que conheciam como terra-mãe.

As poucas palavras de Nizar são ainda mais difíceis de arrancar na hora de recordar o que deixou para trás. “Mulher e dois filhos no Líbano ainda”, conta, não escondendo a vontade de ver o quarteto reunido. “Na Síria, não em Portugal”, admite, apesar de não poupar elogios à cidade que o acolheu no dia 14 de Junho do ano passado. “Boa gente, cidade bonita, mas a Síria é a minha casa”.

Enquanto faz de Portugal local de passagem, encontrou numa cozinha que conhece como poucos a forma de encurtar os mais de 5,5 mil quilómetros que o afastam de casa. Enquanto emprata o húmus e o babaganoush – dois patês típicos do Médio Oriente, o primeiro feito de grão e o segundo de beringela – dá ordens para que alguém mexa a salada. Mohamed chega-se à frente e começa a cortar pedaços de pão para juntar ao mix de tomate, cebola e salsa, usando as técnicas que foi aprendendo com quem sabe, até porque a carreira de militar na Eritreia não lhe deu as bases culinárias para servir 50 pessoas, ainda mais quando entre os convidados está o Presidente da República. “Isto na Síria era impensável”, admite Nazir, mas Marcelo Rebelo de Sousa faz cair qualquer tipo de formalismo quando entre beijinhos e selfies aponta para o balcão das entradas e pergunta: “Posso provar?”

Cozinhar para integrar

Quando Portugal se predispôs a receber 10 mil refugiados, Lisboa chegou-se à frente e garantiu ter capacidade para integrar 10% desse número redondo. Para isso, recorreu à Associação Crescer, habituada já a trabalhar na inclusão social e profissional de sem-abrigo da cidade. “O público é outro”, explica Maria Carmona, “mas o intuito é o mesmo”. A coordenadora do “É uma vida” – nome dado a este projeto, um dos sete que a associação Crescer tem em mãos – explica que o apoio dado pode ir desde a ajuda para fazer o currículo, até acompanhar idas ao médico, toma de vacinas ou registo nas finanças.

Se, no primeiro mês, o acolhimento mais imediato é feito pelo centro de refugiados, no Lumiar, pouco depois são encaminhados para casas, onde são acompanhados de perto por esta equipa durante os 18 meses seguintes.

Maria não encontra dificuldade na língua – que se resolve com gestos –, nem nos hábitos – “não são assim tão diferentes dos nossos”. O mais difícil desta tarefa é mesmo gerir as expectativas de quem acha que num ápice vai encontrar casa e trabalho, para rapidamente poder trazer a família até local seguro. “Neste momento, das 24 pessoas que ajudamos, apenas cinco têm autorização de residência, requisito essencial para conseguirem tratar da viagem de quem lá ficou”, explica.

Foi para amenizar os tempos de espera e também para fazer valer a estadia em Portugal que se pensou em usar aquilo que de melhor sabiam fazer como forma de integração. Apesar de poucos serem cozinheiros profissionais, são rápidos a esclarecer que na Síria toda a gente sabe cozinhar. E a verdade é que para apreciar boa comida, não existem barreiras linguísticas e o gosto por juntar pessoas à mesa é praticamente universal.

A Cozinha Popular da Mouraria foi o espaço escolhido para que, pelo menos duas vezes por mês, este grupo exclusivamente masculino prepare uma refeição que dê a conhecer a gastronomia de cada um dos países de origem. “Foi um tiro no escuro”, confessa Cristina Garcia. A assistente social que fez a coordenação com a Cozinha Popular admite que o primeiro contacto foi feito sem sequer saber se estes homens sabiam cozinhar. “Tive sorte. Os pratos são maravilhosos”, refere. E se o gosto é subjetivo, a afluência fala por si: os cinco almoços que já organizaram são apenas divulgados no Facebok mas contaram sempre com lotação esgotada. No último, decidiu-se até abrir uma exceção e, em sistema rotativo, as 50 pessoas tidas como número limite passaram a 75. Foi ao mesmo tempo um gesto solidário com a fila que não parava de crescer à porta do número 5 da Rua das Olarias, e um salário extra para o grupo de refugiados, que recebe parte dos 15 euros cobrados pelo menu. E apresse-se quem quiser usufruir das duas entradas, dois pratos e duas sobremesas do próximo almoço, que apesar de ser apenas dia 26, é um evento de Facebook que conta já com quase 50 pessoas “com interesse”.

Marcelo (a)prova

Na mesa ainda vazia de pratos, copos e talheres, está um bolo em formato XL com a inscrição “Bem-vindo Marcelo”. O presidente da República pede uma faca, “que isto não é só para ver, pois não?”. Awet, o autor deste primeiro prato personalizado, explica que para aquele tamanho de bolo bastam dois ovos. “Ah, então podemos comer à vontade”, exclama Marcelo, que depois de levar à boca um quadrado pequeno faz a avaliação: “É doce, consistente, não chega a ser um folar mas deve ser óptimo como acompanhamento”.

Não é preciso dizer mais nada. À mesa começam a chegar grandes travessas de húmus, babaganoush e pão árabe, quando na cozinha, à espera da sua vez, estão os mini kebabs de prato principal e a aletria síria para sobremesa. Ao começar a ver a mesa composta, Marcelo dá o mote para se sentarem a quem dele ainda espera formalismos. “Então, vamos comer?”