Falta pensamento. Falta reflexão livre de preconceito e do medo de se encontrar em minoria e impopular nas conclusões e consequências da sua ponderação.
Falta não ter medo da turba, da reação da turba. Que nem chega a opinião, é uma relutância recorrente e impotente de uma ignorância fanfarrona.
A rede social é em muitos casos um monopólio de tolices, slogans, expressões ocas, vazio e nada. Menos que zero, onde nos confundimos e nos perdemos entre os “amigos” virtuais e os amigos vivos.
Já repararam como é facílimo ter amigos, centenas deles, no Facebook, mas é com grande relutância que promovemos na vida real ao patamar de amigo o semelhante que se atravessa todos os dias no nosso quotidiano?
Porquê? Porque é mais simples criar um mundo virtual, sem consequências, sem responsabilidade, onde a emoção e a crença se impõem à razão, onde a coragem se multiplica sob a capa da impunidade e onde o insulto da alcateia despedaça qualquer tese cientificamente demonstrada.
Mas principalmente porque na penumbra da nossa triste condição, iluminados pelo ecrã, podemos dizer que somos outro. Inventamo-nos na totalidade ou parcialmente e projetamos esse ser virtual que, na realidade, não existe para o etéreo, para a caça.
O espaço digital, nas redes sociais, está cheio de não seres, de fantasmas, hologramas que não correspondem a nenhum barro. É assim como uma grande tenda de milagres cibernéticos: o badocha é um jeitoso atleta; o imbecil, um académico com vasta teoria publicada; o penhorado, um abastado proprietário da Andaluzia; e a fogosa Marlene, um Joaquim presidente de junta.
Os seus “manifestos” são frases que não ultrapassam os 140 carateres num caldo de cultivo que é o da ignorância e do fanatismo. Zigmunt Bauman afirmava que “tínhamos esquecido a amizade, os sentimentos e o trabalho bem feito. O que se consome, o que se compra são só sedantes morais para tranquilizar os escrúpulos éticos”.
A ditadura do politicamente correto é uma forma simples de evitar que se fale abertamente sobre a natureza das coisas e se chame pão ao pão e vinho ao vinho. Os termos e as palavras como “danos colaterais” são hoje uma forma manhosa de se inventar uma linguagem de distração que provoca danos, esses sim, inaceitáveis.
A chegada de Trump ao cimo deste mundo-cão estimula a recuperação da predição certeira de George Orwell no seu livro “1984”.
Normalmente, a necessidade de o homem se explicar ou encontrar respostas passa pelos livros. Orwell entendeu que a liberdade não aceita o controlo regulamentado imposto pelo grande observador, venha de um Trump ou das hordas ululantes paridas no Facebook.
Os acordos e protocolos para escutar, a aceitação disfarçada de conforto, a abolição da dissidência, a condenação da insubmissão, a servidão voluntária, enfim, todos os ingredientes que integram os componentes de qualquer ditadura foram repudiados pelo escritor britânico, que se esforçou por assinalar e decifrar os sinais de perigo dos totalitarismos emergentes ao longo de toda a sua obra.
Que Orwell volte a ser um autor cujos livros estão entre os mais vendidos desde que Trump foi eleito não é algo estranho.
Algumas das suas frases albergam sinistras certezas que se cumprem: “A guerra é a paz. A liberdade é a escravatura. A ignorância é força”, escreveu no seu romance “1984”.
Tem interesse que seja um livro de ficção como o de Orwell o que venha advertir que o que ele pensou como pesadelo seja agora uma degenerada possibilidade, com um descontrolado construtor a desenhar a nova ordem do mundo à maneira de um casino.
Não é profecia, é consequência da história: “O mais característico da vida moderna não era a sua crueldade nem a sua insegurança, mas sim o seu vazio, a sua absoluta falta de sentido.”
Aquilo que parecia delirante em 1949, quando saiu a primeira edição, com o tempo foi-se afinando até se converter na banda sonora do primeiro compasso do século xxi.
O mais espantoso não é que Trump se tenha instalado na Casa Branca, mas sim que um livro que denunciava um mundo enlouquecido, décadas depois, tenha razão.
Falta ler. Saber ler. Se o fizermos, o pensamento constrói-se. E contra o pensamento não há vazio que nos devore ou silêncio que se nos imponha.