A vida, a morte e a dúvida


Sei que a distanásia ou obstinação terapêutica – que é como quem diz arrastar o doente num quadro clínico aflitivo – já é condenada pelos corpos médicos e hoje menos praticada.


No seu fim de vida, aquele não era o meu pai. A única coisa que lhe restava era uma enorme esperança. Osso e esperança. Vida, muito pouca, quase nenhuma. E a esperança, mesmo que transbordando, não se substitui à carne nem à vida.

Nos últimos dois anos nunca falámos sobre eutanásia. Não por ser tabu, mas por sabermos que o tempo era um bem demasiado querido para ser gasto em diferendos. Sabíamos que estávamos em campos opostos: eu a favor do princípio, mas com muitas dúvidas; ele, contra e com muitas certezas. O seu estado foi para mim um enorme teste. E ele sabia-o.

A recente morte do meu pai vestiu-se de uma enorme tranquilidade. Foi devagar, sem grande estrondo no chão. Graças a muitos e bons profissionais e aos avanços terapêuticos, foi possível amparar-lhe toda a queda. Este é, aliás, um aspeto fundamental a que o sistema e a sociedade devem atender em primeiro lugar e reforçar ao máximo. Mas mesmo sem dor, aquele já não era ele, já não era o meu pai. Nem nos últimos dias ou semanas aquela vida era digna desse nome. A vida não é dura apenas quando dói. E definhar tão lentamente, mesmo sem sofrimento, não pode ser tolerável.

Pelo meio – e acreditem que dois anos dão para ponderarmos este mundo e o outro – perguntei-me várias vezes se este seria um sentimento egoísta. E logo para com um pai. Como pude, enquanto filho, pensar na antecipação da sua morte? Hoje diria que o fiz naturalmente e que muitos o fazem com igual naturalidade. Desconfio até que ele próprio – mesmo sendo contra – pensou no tema e repetidas vezes na validade da sua vida, o que só por si já é atroz.

Sei que a distanásia ou obstinação terapêutica – que é como quem diz arrastar o doente num quadro clínico aflitivo – já é condenada pelos corpos médicos e hoje menos praticada. Sei que, felizmente, dispomos dos meios para fazer evaporar a dor mesmo nas muito distintas realidades que encontramos. Ainda assim, a enorme perda de faculdades que nos classificam como indivíduo irrepetível e livre e a perda objetiva e irreversível de mínimos de qualidade de vida devia levar-nos a dar espaço a quem melhor saberá julgar sobre si, pois o doente (o próprio) é provavelmente o melhor para decidir o seu destino. E se, em plena consciência, o próprio quiser antecipar a sua morte, quem somos nós, quem sou eu, quem é o Estado para o contrariar e lhe prorrogar a vida?

É óbvio que não é um tema simples e está impregnado de dúvidas. Não acredito sequer que o legislador queira ser Deus ou sequer o Diabo. A sua aplicação será sempre objeto de crítica e questionamento profundo. Mas ainda bem. Este é, primeiro, um tema de princípios, mais que de projetos-lei ou formatos legislativos. Não é um tema dos partidos nem de maniqueísmos. É um tema dos próprios, dos que decidem sobre si, sobre as suas dúvidas, sobre a sua morte. Por mim, deixava-os ter esse espaço, essa liberdade para decidirem. Mesmo que fosse o meu pai e eu fosse o seu filho.

Dirigente do CDS/PP