O parlamento discute hoje uma petição sobre a “despenalização” da eutanásia. Em boa verdade, o texto da petição é mais importante do que a mera redução a esta despenalização, é motivador de discussão e debate, relevante no tempo que vivemos e questionador das nossas consciências.
A burocracia parlamentar, que já se impôs à inteligência de ponderação na valia dos debates, dispõe de uma grelha de tempos de três minutos por grupo parlamentar e, como se adivinhará, o confronto de ideias, antes de ser, já o era: nenhum.
É por isso que se adivinham novos passos para o tema, porque Portugal não navega longe dos restantes países onde estes complexos questionamentos se colocam e porque as agendas mais radicais se vão extinguindo em temas próximos.
Sim, há uma visão religiosa do tema. Mas essa visão religiosa, que é marca da nossa cultura, não deve colar-nos a cada um dos lados da barricada. Porque deve ser a leitura ampla do que se propõe a guiar-nos, porque devem ser as questões éticas a balizar-nos.
O “Senhor que dá a vida”, enquanto elemento central, que também só Ele a pode tirar é uma referência monoteísta não exclusiva dos católicos. Mas este elemento foi ao longo de dois séculos colocado, muitas vezes, entre parêntesis, porque as conquistas pela fé o impunham, porque a ciência o negava, porque os pecados terrenos a isso levavam. Das cruzadas à Inquisição, como ainda hoje o radicalismo islâmico, a relação com a vida foi muito distinta da que os textos sagrados nos consagram, foi humanamente objetora dessa mesma vida.
Miguel Torga, em “Novos Contos da Montanha”, consagra-nos a imagem absolutamente fantástica do “abafador”. Destinado a pôr fim à vida dos sofredores, entrante no leito depois da saída do padre, tratava-se de pôr a nu o último ato perante a desesperança.
Sendo lenda ou não, a verdade é que quem vive os espaços mais rurais e com mais memória se afirma confirmador dos imensos “abafadores” que até à chegada do médico, como coisa sua, os povos reconheciam. Esta discussão sobre o fim da vida imposto ou consentido não é, portanto, de hoje.
Em “Mar Adentro” (2004), em “Amor” (2012) ou em “Viver Depois de Ti” (2016), filmes relevantes para a matéria, a morte assistida aparece-nos com roupagens diferentes, cada qual com um destino, uma razão, e até, no último, como uma enorme interrogação.
Perante a impossibilidade prática de se mover, de se tratar, mesmo que mantendo todas as faculdades mentais, que nos leva pela tela à procura de uma razão de ser para a vida, a de Ramon em “Mar Adentro”, há hoje uma esperança que se contrapõe. Em “A Teoria de Tudo”, que nos conta como Stephen Hawking se não quedou em fazer um mundo melhor, construindo mesmo a sua família mais feliz e, por essa via, sendo, também ele, mais feliz, negando o fim por lhe parecer cobardia.
Perante a realidade final de idosos abandonados, como Michael Haneke nos conta em “Amor”, impõe-se uma atitude de integração e de acompanhamento, de família, afinal, que não desgradue, que não elimine, que não vulgarize esta magnífica experiência a que ninguém ainda conseguiu encontrar o pai – a vida.
Mas é em “Viver Depois de Ti” que o questionamento se coloca com mais intensidade – como dar como adquirida a decisão de um momento? Como transformar o ato, sempre voluntário, mas, todavia, sempre emocional, de decidir morrer e fazê-lo acompanhar da uma decisão cientificamente ponderada, não burocraticamente autorizada?
A decisão de morrer, em consciência, é aqui, como na pena de morte aplicada por outrem, o fim absoluto. Não há retorno nem ponderações subsequentes, não há novos enquadramentos que nos façam duvidar, novas implicações científicas que nos façam acreditar, novas leituras sobre o mundo, novas ideias sobre o que aqui nos agarra.
É por isso que a eutanásia, como cutelo definitivo que autorizamos a nós próprios, se reveste de uma dimensão que nenhum de nós, em especial os que perante a situação se apresentam, deve poder assumir. Ninguém tem todos os dados para decidir morrer. Ninguém se reveste do saber sobre o futuro que impeça continuar a viver.