Ama-San. O mergulho da libertação

Ama-San. O mergulho da libertação


O filme com que Cláudia Varejão venceu a competição nacional da última edição do Doclisboa chega amanhã às salas. Retrato de um Japão do futuro que já existe há mais de mil anos


Mayumi, Masumi e Matsum são protagonistas desta história que Cláudia Varejão foi resgatar num filme ao Japão mais profundo e ancestral, pretexto para uma conversa à mesa de um café de Lisboa que tanto se faz sobre a falta de mulheres no cinema como sobre o poder destas Ama, mulheres-mergulhadoras das vilas costeiras do Japão, precursoras da emancipação, seres de um tempo que parece futuro mas que vem de há mais de mil anos e que a realizadora foi descobrir nas fotografias do antropólogo italiano Fosco Maraini, que na década de 1950 as trouxe ao Ocidente.

Mulheres que podiam ser Mayumi, Masumi e Matsum, com a diferença que hoje estes mergulhos se fazem em fatos e de barbatanas e era nuas que mergulhavam nas geladas águas do Pacífico as mulheres que nos chegaram pelas fotografias a preto-e-branco de Maraini. Sem botijas de oxigénio, e isso mantém-se, de outra forma seria demérito, viagens de minutos por entre algas a dez metros de profundidade. “Protege-nos dos perigos do mar, protege-nos dos tubarões”, ouvimos rezar uma e outra vez, e podia ser mesmo uma das Ama de Maraini esta mulher de 83 anos que mergulha hoje como mergulhava nos anos 50, quando o que havia no fundo do mar eram ostras e pérolas, não só abalone e búzios.

Cláudia Varejão descobriu as Ama num poema escrito por uma amiga. “Achei que era uma metáfora, uma figura ficcionada, mas havia uma nota final que fazia uma descrição exata de quem estas mulheres eram, que existiam e faziam parte de uma tradição muito antiga no Japão.” As Ama que com uma bolsa da Fundação Oriente foi descobrir numa viagem ao Japão no ano seguinte, viagem que terminou em Wagu, vila piscatória nas redondezas de Osaka, onde conheceu Mayumi, Masumi e Matsum, as três mergulhadoras de três gerações que conhecemos em “Ama-San”, filme documentário sobre as Ama, sobre as mulheres, sobre uma espécie de sociedade do futuro vinda passado. “O mergulho das Ama tornou-as independentes e em muitas famílias a mulher chegou a tornar-se no único elemento trabalhador, fenómeno que, num país patriarcal e conservador como o Japão, jamais se voltou a repetir.”

Com Mayumi, Masumi e Matsum, e com as outras quatro mulheres que todos os dias na época dos mergulhos, de março a setembro, partem no mesmo barco para a caça do abalone, Cláudia Varejão foi logo dessa vez até ao mar. Essa e muitas outras, todos os dias em que foram durante um mês completo, em 2014, quando regressou para rodar esta sua segunda longa-metragem que se estreou no festival suíço Visions du Réel e venceu a competição nacional da última edição do Doclisboa. “No cinema é assim, há empatias, e eu percebi logo que era ali que queria fazer o filme, com aquelas mulheres”, recorda a realizadora que tem feito o seu caminho sobretudo pela ficção, dado que não passa despercebido na forma como a realizadora de 36 anos construiu “Ama-San”.

“É tudo real, tudo aconteceu, mas na ficção também tudo acontece”, sorri para completar que essa questão dos géneros é coisa que “com o tempo  vai começar a fazer cada vez menos sentido”. A prova são os “objetos híbridos” que vão aparecendo mais e mais, caminho que foi o que procurou seguir. “O banho entre a avó e o neto, por exemplo, foi pedido, mas ao mesmo tempo eu sabia que eles faziam este banho regularmente, portanto não deixa de ser real”, diz sobre este filme que foi construindo em conjunto com as três mulheres que escolheu como personagens. “Há uma co-criação entre mim e elas. Expliquei-lhes desde logo o que gostava de fazer, que gostava que fosse um filme sobre as Ama mas que transcendesse isso, que fosse sobre a vida destas mulheres. Porque para se perceber a dureza é preciso perceber-se a fragilidade, para se perceber o trabalho do mar é preciso perceber-se que vidas é que elas têm. Interessava-me a vida do mar e a vida da terra. E houve um entendimento muito forte e o filme foi-se construindo.”

E será este um filme expectável de alguém que começa uma conversa com um lamento sobre continuar a haver mulheres do que homens a fazer filmes. “Acredito em retratos de mudança, retratos de realidades que sabemos que existem e que queremos perpetuar, portanto não é inocente querer fazer um filme sobre mulheres que representam uma realidade de maior paridade com os homens”, diz sobre o que a motivou a ir ao Japão rodar um filme tão belo e poético quando político, feminista. E a Cláudia Varejão não passa ao lado o poder transformador do cinema, da arte em geral. “Se não olharmos para ela assim, não serve para nada, é só uma vaidade, uma peneira.”

AMA-SAN Trailer ENG from TERRATREME FILMES on Vimeo.