Mário Soares. Razões pelas quais entrou para a história


Fundou o Partido Socialista, impediu a instauração de uma nova ditadura durante o PREC, liderou a adesão de Portugal à CEE e soube ser o Presidente de todos os portugueses. Uma síntese do legado que Mário Soares deixa à democracia nacional, pelo seu mais próximo colaborador político


ão é fácil resumir em poucas palavras o longo percurso político de Mário Soares, que se estendeu por mais de seis décadas.

Foi, sem dúvida, um político de todos os combates contra a ditadura, pela Liberdade, pela Democracia e pelos Direitos do Homem, considerado uma referência democrática – não só em Portugal, como na Europa e no Mundo – tão simbolicamente como o foram, por exemplo, Winston Churchill, na Grã-Bretanha, ou o general De Gaulle, em França.

Desde muito jovem, Mário Soares foi um activo resistente à ditadura de Salazar e Marcello Caetano.

Além da sua militância política, sobretudo a partir do MUD Juvenil e da candidatura do General Norton de Matos a Presidente da República, Mário Soares defendeu, como Advogado, muitos presos políticos, nos tribunais plenários criados pelo Estado Novo, e foi o representante da família do general Humberto Delgado, assassinado por um comando de agentes da PIDE, a mando de Salazar, em território espanhol.

Preso 12 vezes pela PIDE, Mário Soares foi deportado sem julgamento, por decisão de Salazar, para a ilha de São Tomé em 1968, esteve exilado em França entre 1970 e 1974, por decisão de Marcello Caetano, e só pôde regressar a Portugal após o 25 de Abril.

Em poucas palavras, poderemos salientar quatro etapas fundamentais no percurso político de Mário Soares:

1 – FUNDADOR DO PARTIDO SOCIALISTA, UM ANO ANTES DO 25 DE ABRIL

Como activo resistente à ditadura de Salazar e Marcello Caetano, uma das preocupações fundamentais de Mário Soares foi a de constituir uma oposição de esquerda credível, independente e autónoma do Partido Comunista Português, que hegemonizava a Oposição. Em suma: uma oposição republicana, socialista e democrática, defensora das liberdades, dos direitos humanos e de uma democracia pluralista e pluripartidária, numa sociedade aberta.

Mário Soares conseguiu atingir esse objectivo, em várias fases:

– Em 1953, fundou, juntamente com Manuel Mendes, Fernando Piteira Santos, Gustavo Soromenho e Francisco Ramos da Costa, a Resistência Republicana e Socialista, grupo de reflexão que procurou construir uma nova alternativa de esquerda não comunista;

– Em 1957, passou a integrar, em representação da Resistência Republicana e Socialista, o Directório Democrato-Social, constituído, entre outros, por António Sérgio, Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes;

– Em 1964, fundou a Acção Socialista Portuguesa (ASP), com Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais;

– Em 1969, constituiu a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), que congregou vários representantes da oposição de esquerda não comunista, para enfrentar a primeira farsa eleitoral organizada por Marcello Caetano, o qual, não por acaso, elegeu então Mário Soares como seu adversário principal;

– Finalmente, em 19 de Abril de 1973, fundou, no exílio, com os seus companheiros da ASP, o Partido Socialista (PS), do qual veio a ser o Secretário-Geral até 1986.

2 – SÍMBOLO DA LUTA CONTRA A TENTAÇÃO TOTALITÁRIA, DURANTE O “PREC”

A iniciativa de propor a fundação do PS foi uma decisão política notável e premonitória de Mário Soares, que veio a revelar-se fundamental logo após o 25 de Abril, sobretudo durante o PREC (o chamado “Processo Revolucionário Em Curso”) e o célebre “Verão quente” de 1975.

Foi a existência de um Partido Socialista consolidado e forte – sob a liderança de um democrata convicto, corajoso e lúcido como Mário Soares – que permitiu impedir que a jovem democracia portuguesa sucumbisse, dilacerada pela violenta luta política entre a tentação totalitária, de sinal comunista, e a reacção saudosista dos velhos adeptos da ditadura. No célebre comício da Fonte Luminosa, no “Verão quente” de 1975, Mário Soares escreveu uma página crucial da história da democracia em Portugal.

3 – PIONEIRO DA ADESÃO E DA INTEGRAÇÃO DE PORTUGAL NA CEE, HOJE UE

Institucionalizado o regime democrático em 1976 – num país ainda a sarar as feridas causadas pela ditadura, pela tão atribulada transição democrática, pela descolonização e pela desordem económica generalizada – foi também Mário Soares, como Primeiro-Ministro do I e II Governos constitucionais, que iniciou e desbravou, a partir de 1976, o caminho que conduziu à adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) e à sua posterior integração na Europa comunitária, em 1985.

Entre 1976 e 1978, primeiro, e entre 1983 e 1985, depois, como primeiro-ministro do IX Governo constitucional, enfrentando e resolvendo a gravíssima crise económica e financeira herdada dos Governos da Aliança Democrática (AD), foi Mário Soares quem abriu e encerrou o ciclo da integração europeia de Portugal, outra página crucial da história da democracia em Portugal.

4 – NOTÁVEL “MAGISTRATURA DE INFLUÊNCIA” COMO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Finalmente, em 1986 – apesar da enorme dificuldade e extrema dureza duma campanha eleitoral em que teve de enfrentar adversários da estatura política de Freitas do Amaral, Salgado Zenha e Lourdes Pintassilgo –, Mário Soares foi o primeiro civil a ser eleito Presidente da República após o 25 de Abril. Foi o culminar feliz, justo e natural de uma carreira política excepcional e também, como vários comentadores fizeram questão de sublinhar, a justa consagração de um “pai fundador da democracia portuguesa”.

Colocando-se numa posição suprapartidária – naquilo que ele próprio designou por “Presidência Aberta” com sucessivas sedes em todo o País – Mário Soares soube ser, durante 10 anos, “o Presidente de todos os portugueses”.

Logo no início do seu primeiro mandato como Presidente da República, Mário Soares encetou e exerceu uma verdadeira “magistratura de influência”, através da qual conseguiu garantir a estabilidade política e o equilíbrio de poderes essencial ao regime democrático –- tendo consolidado, porventura por várias décadas, o regime semi-presidencial sabiamente consagrado na Constituição da República aprovada em 1976.

Se muitas outras razões não bastassem – numa carreira política tão longa, tão intensa e tão brilhante – estas quatro que hão de ser mais do que suficientes para reservar a Mário Soares um lugar proeminente na História de Portugal, assim como na história das transições pacíficas da ditadura para a Democracia durante o século XX.

Lisboa, 13 de Janeiro de 2017