Um cravo vermelho na lapela de João Soares. Uma rosa amarela no peito de Isabel Soares. Na hora da despedida, os filhos de Mário Soares evocaram o combatente pela liberdade, mas também o pai e o marido, e a forma como aquilo que lhes ensinou os marcou para sempre. Naquele que foi o primeiro funeral de Estado organizado no Portugal democrático, a cerimónia teve espaço para a intimidade e a emoção da família.
Com os filhos Jonas e Lilah sentados na primeira fila, João Soares evocou o passado antifascista do pai para que ele sirva de exemplo às gerações mais jovens.
“No início de dezembro de 1967, a polícia política – PIDE – prendeu mais uma vez o meu pai. Passou, então, o Natal e o Ano Novo de 68 na prisão de Caxias, com uma visita da família, uma vez por semana, 15 minutos, no parlatório, separados por grades”, contou João, relatando o calvário de luta antifascista que levou Mário Soares a ficar privado da liberdade por se bater por ela.
“Somou cerca de quatro anos, entre prisão e deportação sem julgamento. Sofreu um número de prisões elevado. Talvez dos mais elevados entre os presos políticos portugueses – 13, contando com a deportação para São Tomé, em 1968”, apontou João Soares, que se habituou a ver no pai o herói de uma nação.
“Habituámo-nos a vê-lo, minha irmã e eu, num sórdido parlatório da cadeia de Lisboa, separados por grades”, lembrou o filho, que desde cedo percebeu a importância do combate do pai e não tem hoje dúvidas de que a forma como conduziu a sua vida lhe garantiu um lugar na História.
“Afirmou-se como uma das grandes figuras do Portugal democrático do 25 de Abril, por mérito da sua intervenção cívica constante, do seu apego a Portugal e aos valores democráticos, ganhou um lugar entre as grandes figuras da Europa da segunda metade do século passado”, declarou João Soares que, optando por um discurso mais político, se mostrou emocionado e se despediu com um “adeus, querido pai”.
Se João levou para o púlpito da cerimónia no Mosteiro dos Jerónimos a flor símbolo da Revolução de Abril, Isabel pôs ao peito a rosa preferida da mãe. E foi depois de a voz de Maria Barroso ecoar nos claustros, lendo um poema de amor e despedida, que a filha de Mário Soares discursou, revelando a enorme cumplicidade com o pai, mas também o papel determinante da mãe no percurso de Soares.
“Nunca nenhum de nós, seus filhos, lhe faltou com o amor incondicional. Aprendemos essa lição de vida da nossa mãe. E é justo dizer isso aqui, nesta hora de despedida, que o nosso pai nunca teria feito o que fez ou chegado onde chegou sem a presença tranquila, serena e doce, mas firme, dessa mulher admirável que foi a sua”, disse Isabel Soares, que partilhou com todos a forma como se habituou a ver o pai.
“O pai era, para o João e para mim, o nosso herói. Quando o pai estava, tudo parecia seguro e tranquilo. Ensinou-nos desde muito pequeninos a não ter medo do escuro nem das ondas do mar da Foz do Arelho”, revelou, confessando que Maria Barroso sempre a achou parecida com o pai. “A nossa mãe dizia que éramos iguais de feitio, apaixonados e coléricos.”
Sempre próximos, nem sempre concordando, Isabel lembrou mesmo que foi contra a sua opinião que Mário Soares voltou a ser candidato presidencial em 2006, quando o estatuto que tinha já o podia resguardar de ir a votos e sair derrotado, como aconteceu. Soares optou pela luta e ontem a filha reconheceu que não esperava do pai outra atitude.
“O pai partiu como viveu: a lutar até ao fim e rodeado pelos seus dois filhos. Com a sua mão na minha”, contou Isabel Soares, que se emocionou várias vezes ao longo destes dois dias de cerimónias fúnebres, mas nunca saiu de perto da urna de Soares, de quem se despediu com um “até sempre, querido pai”.