O legado político de Mário Soares


A geringonça de António Costa é o oposto do que Soares sempre defendeu para o PS, criando uma bipolarização à esquerda com o apoio do PCP e do BE


Neste dia em que nos despedimos de Mário Soares cabe lembrar o enorme legado que este deixou ao país. Mário Soares foi sucessivamente o principal opositor à ditadura, o homem que combateu na rua o PREC, o primeiro-ministro que enfrentou duas crises financeiras mas conduziu o país à integração europeia e, finalmente, o Presidente da República na altura do apogeu do regime. Dotado de uma vontade indómita e de uma enorme coragem física, Mário Soares foi preso e exilado, mas nunca esmoreceu nas suas convicções, tendo depois alcançado os mais altos cargos do Estado. Dizia que só é vencido quem desiste de lutar e, de facto, lutou até ao último segundo da sua vida.

É, no entanto, manifesto que o legado político de Mário Soares está hoje claramente em risco. O seu objetivo sempre foi transformar o PS no partido-charneira do regime, que governaria ao centro, tendo como muleta o PSD. Para isso criou um cordão sanitário entre o PS e os partidos da extrema-esquerda, não admitindo alianças com estes e nunca deixando que a ala esquerda do PS tomasse conta do partido.

Sá Carneiro trocou as voltas a esse projeto com a bipolarização à direita que foi a AD. Mas Soares soube esperar, conservando o PS no centro político e, depois do colapso da AD, conseguiu finalmente o apoio do PSD para o bloco central que sempre desejara e que lhe deveria dar o acesso num andor à Presidência da República. Mas Cavaco Silva voltaria à bipolarização e Soares teve de combater arduamente para ser eleito. Vencedor absoluto na eleição presidencial, Soares não conseguiria, no entanto, impor um sucessor no seu partido, tendo assistido a partir da Presidência à deslocação do PS para a esquerda, primeiro com Constâncio e depois com Jorge Sampaio, que construiu a primeira geringonça na Câmara de Lisboa. Mas Guterres e, principalmente, Sócrates voltariam a recentrar o PS, tendo sido com este último que Soares teve melhor relação.

A geringonça de António Costa é, por isso, precisamente o oposto do que Soares sempre defendeu para o PS, criando uma bipolarização à esquerda, com o apoio do PCP e do BE, e colocando o PS totalmente nas mãos da sua ala esquerda, cada vez mais radical. Não é, por isso, de estranhar que um dos esteios deste governo, o PCP, tenha achado necessário registar “as profundas e conhecidas divergências que marcaram as relações do PCP com o dr. Mário Soares”. Na verdade, o PS da geringonça nada tem a ver com o PS de Mário Soares.