Alfredo Barroso.  “Era de um otimismo transbordante”

Alfredo Barroso. “Era de um otimismo transbordante”


Alfredo Barroso foi chefe da Casa Civil da Presidência da República nos dez anos de Soares em Belém. Sobrinho por parte de Maria Barroso, começou a colaborou com o tio da adolescência até à última campanha presidencial


Qual é a primeira imagem que tem do seu tio Mário?

Por acaso, é uma imagem muito curiosa. Eu tinha acabado de ser colocado como aluno interno do Colégio Moderno. Tinha cinco anos. Havia o hábito, incentivado pelo então diretor prof. João Soares, de os miúdos rezarem em frente a uma espécie de altar antes de se deitarem. Lembro-me de estar de joelhos nesse oratório e vejo os meus tios Maria Barroso e Mário Soares a avançar para aquela zona, a chamarem à parte a senhora que cuidava de nós. E quando acabou a conversa, a vigilante disse-me: “O menino Alfredo vai–se já deitar.” Confirmei tempos mais tarde, quando já era mais velho, que eles tinham lá ido dizer que o meu pai não queria que eu recebesse uma educação católica. 

Viveu a infância e juventude perto da sua tia e do seu tio. Acabou por ser mais um filho?

Não, isso não é exato. Não fui mais um filho. Mas fui um sobrinho que foi particularmente bem tratado quando ainda era muito miúdo, por causa da separação dos meus pais e de a minha mãe ter ido para Itália. Eu vivi sempre no colégio como aluno interno, não vivi em casa deles. Agora, dava-me muito com eles, ia lá muito a casa. Quando eu já era mais crescido, aí pelos 14-15 anos, Mário Soares chamava-me lá a casa para lhe fazer uns trabalhos, para escrever à máquina documentos da oposição. E também para organizar a biblioteca dele, que era um trabalho infinito e que nunca foi terminado. Nem por ele. 

E como começa a colaboração política? Alfredo Barroso é fundador do PS…

A colaboração política mais próxima é a partir de 1968, quando eu levo a casa de Mário Soares o Jaime Gama e outro amigo nosso que já morreu, o José Luís Nunes, para declararmos que queríamos aderir à Ação Socialista Portuguesa, a ASP, que é o embrião do que haveria de ser, em 1973, o Partido Socialista. Nessa altura também entraram para a ASP o Mário Mesquita, o Alberto Arons de Carvalho. Aí começa a colaboração de caráter partidário. 

Foi o colaborador mais próximo de Mário Soares durante a sua carreira política. Como é que ele o convida?

O ato simbólico que selou o início da nossa colaboração logo a seguir ao 25 de Abril nem sequer foi o convite que ele me viria a fazer, pouco depois, para ir com ele para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde fui diretor dos serviços de informação e imprensa. O convite que mais me honrou nessa altura foi quando ele me chamou e disse “pá, vai ser publicado em português o meu livro ‘Portugal Amordaçado’ e quero que sejas tu o autor do texto da contracapa”. Foi isso que marcou o início, como diz o Bogart no “Casablanca”, de uma “beautiful friendship” [bela amizade]. 

Como era Mário Soares no dia-a-dia? Todos sabemos que era um animal político.

Era. Mas era sobretudo caracterizado pela coragem, firmeza das convicções, pela clarividência e pela extraordinária convicção política. Mas, acima de tudo isso e alimentando tudo isso, era de um otimismo transbordante. Foi o otimismo que o fez nunca soçobrar nem nos piores momentos. Lembro-me de um episódio, que só eu e a minha tia presenciámos, em que ele se sentiu desamparado e abatido. Foi em novembro de 1985 quando, depois de sairmos do governo, ele foi a uma sessão de esclarecimento nos arredores de Lisboa e aquilo foi um desastre. Não havia quase ninguém. Ele chegou a casa muito desmoralizado e a minha tia viu-o tão caído, coisa que não era costume nele, que me telefonou. Cheguei lá a casa e ele disse-me: “Isto foi um desastre absoluto. Vou perder [as presidenciais].” Eu disse-lhe que achava que iria ganhar e fazer uma grande campanha. Claro que na altura não era uma previsão, era uma moralização. Mas acabou por acontecer. No dia seguinte, já era um Mário Soares completamente diferente, vinha muito bem vestido, remoçado. Era um homem com uma capacidade de regeneração que explica provavelmente a sua resistência à doença. 

E aquele mau feitio histórico?

Ele tinha mau feitio. Era uma pessoa que de vez em quando fervia em pouca água. Agora, o otimismo era verdadeiramente extraordinário. Tirando aquele episódio, nunca mais o vi abatido, nem nos piores momentos. Quando caiu o primeiro governo constitucional na Assembleia da República, ele fez um discurso memorável em que, às tantas, citava uma frase célebre do António Sérgio, que era “venho do Bairro Alto cozidinho de facadas”. Foram muitas as facadas que levou, inclusive de pessoas que lhe estavam próximas, de ministros dele. 

Mas de quem?

Isso não posso dizer, porque eles agora têm aparecido na televisão a dizer que ele era um grande primeiro-ministro. Na altura diziam que ele não tinha vocação para primeiro-ministro, o que era falso. 

Tiveram uma zanga nesta última campanha presidencial…

Eu reconheço que cometi um gravíssimo erro. Nunca devia ter aceitado o convite que me fez para ser diretor de campanha. Ele não quis submeter-se a nenhuma disciplina, como tinha acontecido em 85/86. Em 2005/2006 já não foi assim. O grande problema dele foi que entrou na campanha a dizer “isto está no papo” e a acreditar que, apresentando-se ele, o Cavaco não se candidatava. O desentendimento é da minha responsabilidade e de Mário Soares. Mas é também dos amigos da onça que incentivaram esse desentendimento. 

Mas depois fizeram as pazes…

Já muito tardiamente. Foi no dia em que ele fez 90 anos.