Diplomacia.  O antídoto americano

Diplomacia. O antídoto americano


Sem a ligação americana, o país podia ter assistido a uma Baía dos Porcos, ao comunismo ou, quiçá, a nenhum deles


Hoje é ainda muito difícil medir com exatidão a importância da ponte americana construída por Mário Soares e Frank Carlucci nos meses que se seguiram ao 25 de Abril. Os Estados Unidos podem ter sido irrelevantes, um empurrão apenas para os socialistas que, por aqueles dias, se sentiam isolados contra as montanhas de ajudas que choviam da União Soviética para o Partido Comunista Português. Mas pode ser também que a ponte americana tenha evitado uma de duas conclusões para o processo revolucionário: um regime comunista ao estilo dos que existiam no leste da Europa, não havendo mão americana; ou o seu contrário, caso Washington tivesse optado pela intervenção – o golpe de direita que Spínola não se cansou de orquestrar no exílio. Mas adiantamo-nos.

Qualquer país relevante queria ter alguma coisa a dizer acerca do futuro português depois da revolução. Num mundo bipolar, esse era certamente o caso dos Estados Unidos e da União Soviética. Washington, todavia, atravessa por essa altura um período de paralisia: acaba de ver um presidente cair com o maior escândalo de corrupção alguma vez desvendado e sai à pressa da desastrosa guerra no Vietname. Aos olhos americanos, em especial aos do poderoso Henry Kissinger, que transitara como secretário de Estado para o governo de Gerald Ford, Portugal é um caso perdido, condenado a cair na esfera soviética. Vem daí a teoria do “antídoto”: um regime comunista português, pobre e isolado, pode servir de aviso aos países realmente importantes – Espanha, Itália e França – para não seguirem o mesmo modelo.

Frank Carlucci convence-o do contrário. O embaixador americano chega a Lisboa envolto numa névoa de suspeição. Vem com a fama de agente da CIA – a verdade é que se torna mesmo seu diretor anos mais tarde – e atrás de si deixa os golpes no Brasil, no Zaire e em Zanzibar. Multidões protestam à porta da embaixada e Otelo Saraiva de Carvalho ameaça mesmo deixá–lo sem proteção até ser derrotado por um simples almoço – “meteu-o no bolso do colete”, diz mais tarde Mário Soares. Agente ou não, Carlucci chega à conclusão de que a frente comunista portuguesa pode ser derrotada porque, em parte, o país está longe da União Soviética, tem fortes laços económicos com a Europa, a Igreja desempenha um papel fundamental e o seu povo tem orgulho na independência.

Carlucci conclui que os EUA têm apenas de “apoiar as forças certas”, como explica ao i Tiago Moreira de Sá, professor na Universidade Nova e autor do livro “Carlucci Versus Kissinger” (Dom Quixote). “Sendo a revolução muito à esquerda, porque se seguia a um golpe contra uma ditadura de direita, as forças certas teriam de ser da esquerda não comunista, defensoras de uma democracia de modelo ocidental, que, no campo civil, era o PS.” Ou seja: Mário Soares.

Desconfiança

A solução Soares não é fácil de vender. Mas acontece que Carlucci e Donald Rumsfeld – à data, o chefe de gabinete de Ford – foram colegas de quarto em Princeton e parceiros na mesma equipa de luta livre. Kissinger é quase forçado a acreditar na viabilidade portuguesa. “Carlucci, através de Rumsfeld, consegue acesso direto ao presidente. Quando Kissinger é informado chama- -o e diz-lhe: ‘Sei que vai ter um encontro com o presidente e quero-lhe dizer que a partir de agora tem todo o meu apoio. Acho que está enganado, mas tem o meu apoio’”, conta Tiago Moreira de Sá. “Carlucci responde: ‘Então, já que tenho o seu apoio, já não preciso de me encontrar com o presidente.’”

Estava vendida a ideia. Soares e o seu Partido Socialista são agora os homens preferidos dos americanos, mesmo que Kissinger diga do português que não tem carisma suficiente para a tarefa. Carlucci, porém, ficou já convencido com a vitória dos socialistas nas eleições para a Assembleia Constituinte. O PS, afinal de contas, consegue vencer de norte ao sul do país. Os encontros com Soares no zimbório da embaixada americana tornam-se frequentes. “Para conspirar?”, lança Teresa de Sousa no “Público” vários anos mais tarde, em 2006. “[Para] não deixar a revolução portuguesa descambar para uma nova ditadura”, responde Carlucci. A verdade é que os Estados Unidos começam uma pressão diplomática contra a União Soviética e decidem não apoiar nem os separatistas açorianos nem o exilado Spínola, que em Lisboa se teme que apareça aos americanos como uma espécie de solução de última hora contra um governo comunista.

Como explica ao i David Castaño, também investigador no Instituto Português de Relações Internacionais da Nova e autor do livro “Mário Soares e a Revolução” (Dom Quixote): “Os Estados Unidos dão sinais do apoio num encontro com a União Soviética, em Helsínquia. Não temos dados, mas, em princípio, os soviéticos também fazem chegar ao Partido Comunista, ainda antes do 25 de Novembro, que não estão dispostos a enfrentar os Estados Unidos por causa de Portugal – de certa maneira, terão recebido ordens para não avançar.” “Se não existisse esta pressão, os soviéticos podiam ter tentado apoiar mais o PCP. Por outro lado – e isto também não se sabe ao certo –, também haveria forças de direita a tentar mobilizar-se e podia ter acontecido precisamente o contrário: uma coisa à chilena em resposta à ofensiva de esquerda.”