Mário Soares, o meu amigo improvável


Não faço ideia por que Mário Soares se tornou meu amigo. Às vezes pensava que, tirando a minha família, era a pessoa que mais se preocupava comigo.


Extremamente pontual. O político mais português de Portugal era, nestas coisas, completamente inglês. Quando combinávamos almoçar, eu stressava para não chegar tarde, à portuguesa, com aqueles 15 minutos de desconto para tudo. 

Quando comecei a ser jornalista Mário Soares já era Presidente da República. Nunca tivemos relações próximas. Fiz uma ou outra visita de Estado – lembro-me de uma à Suécia, onde Soares desafiou o louco protocolo monárquico sueco e convidou os jornalistas portugueses a juntarem-se a ele na visita ao túmulo de Olof Palme, uma das suas grandes referências políticas.

De resto, nada. Soares era Presidente da República e eu era uma miúda. 

Foi em 2009 que pela primeira vez entrevistei Mário Soares. Ia numa pilha de nervos. Já tinha feito centenas de entrevistas na vida, mas nunca tinha entrevistado «o Soares». Saí de lá a achar que tinha feito uma entrevista péssima. Eu não estava à altura. 

Achei que tinha começado logo mal porque, no primeiro cumprimento, o tratei por «senhor Presidente». Soares foi algo ríspido: «Por favor não me trate por senhor Presidente. Eu não sou Presidente. Sou o Mário Soares». Apesar de me ter justificado com as tradições francesa e americana nunca mais o tratei por «senhor Presidente». Com a convivência passou a ser simplesmente o «sôtor». Não sei o que ele pensaria do porta-voz da Cruz Vermelha, nos dolorosos boletins diários dos últimos dias, o tratar sempre por «Presidente Soares».

Agora que estou a escrever este texto só me lembro de coisas parvas. Por exemplo: quando almoçava com Soares preocupava-me em vestir alguma coisa de jeito – e principamente não usar ténis. Percebi rapidamente que, por muito idoso que já fosse, fazia-lhe confusão mulheres mal-arranjadas. Foram muitos anos ao lado de uma das mulheres mais elegantes do país, Maria de Jesus Barroso. 

Falar de política com Mário Soares era uma coisa extraordinária. Até à morte de Maria Barroso, Soares bebia, respirava e comia política – parecia uma coisa física. Até Maria Barroso morrer foi um homem absolutamente feliz. A fragilidade física pós-encefalite não o parou: só um homem excecional consegue três meses depois de estar à beira da morte organizar uma sessão contra a austeridade do Governo PSD/CDS na Aula Magna. 

Mário Soares gostava muito de almoçar no terraço do Hotel Mundial. Adorava a vista de Lisboa. Depois apanhou lá uma intoxicação e nunca mais voltou. Mais tarde, começou a gostar de ir – também pela vista – ao restaurante moçambicano Zambeze. Nunca podia faltar vinho à refeição. Acho que nos últimos anos só o dr. Mário Soares me conseguia pôr a beber vinho ao almoço. Fazíamos brindes.

Não faço a mínima ideia por que Mário Soares se tornou meu amigo. Eu achava que não merecia. Mário Soares era extraordinariamente doce – e conhecendo a sua biografia política e as suas histórias de vida, a sua doçura parecia-me uma coisa improvável. Perguntava-me sempre pelo meu filho, pelos meus pais – que vivem em Caldas da Rainha, uma cidade que Soares sempre amou e onde viveu durante um ano, em criança, em casa da família Maldonado Freitas. Preocupava-se com a minha saúde, com o facto de eu fumar e até com a minha vida louca, em que o jantar é sempre depois das 11 da noite. 

Soares adorava a vida. Pasmava-se com Lisboa, a sua cidade. Tinha uma veneração pelos pais – cujas fotografias estavam sempre por perto – e pelos filhos. 

Pensei que ia superar a morte de Maria Barroso. Na primeira vez que nos encontrámos depois do falecimento da companheira da vida, falou do seu choque, do sofrimento, da tragédia. Mas, de repente, tentou dar a volta: «Vamos falar de outras coisas», disse. Falámos de política, como sempre. Nesse dia saí da Fundação com a ideia de que Mário Soares iria continuar a sua vida, apesar do sofrimento e do luto. 

Não foi assim. Maria Barroso fazia-lhe uma falta imensa – a horrorosa coincidência de ter morrido de uma queda precisamente ao lado da mesa de refeições da família fazia-o diariamente lembrar o choque. Quando, no dia 13 de dezembro, Soares foi internado, disse aos meus amigos que ele iria resistir, que iria voltar a casa. Durante bastante tempo, confesso, estive em estado de negação.

Mário Soares, o meu amigo improvável


Não faço ideia por que Mário Soares se tornou meu amigo. Às vezes pensava que, tirando a minha família, era a pessoa que mais se preocupava comigo.


Extremamente pontual. O político mais português de Portugal era, nestas coisas, completamente inglês. Quando combinávamos almoçar, eu stressava para não chegar tarde, à portuguesa, com aqueles 15 minutos de desconto para tudo. 

Quando comecei a ser jornalista Mário Soares já era Presidente da República. Nunca tivemos relações próximas. Fiz uma ou outra visita de Estado – lembro-me de uma à Suécia, onde Soares desafiou o louco protocolo monárquico sueco e convidou os jornalistas portugueses a juntarem-se a ele na visita ao túmulo de Olof Palme, uma das suas grandes referências políticas.

De resto, nada. Soares era Presidente da República e eu era uma miúda. 

Foi em 2009 que pela primeira vez entrevistei Mário Soares. Ia numa pilha de nervos. Já tinha feito centenas de entrevistas na vida, mas nunca tinha entrevistado «o Soares». Saí de lá a achar que tinha feito uma entrevista péssima. Eu não estava à altura. 

Achei que tinha começado logo mal porque, no primeiro cumprimento, o tratei por «senhor Presidente». Soares foi algo ríspido: «Por favor não me trate por senhor Presidente. Eu não sou Presidente. Sou o Mário Soares». Apesar de me ter justificado com as tradições francesa e americana nunca mais o tratei por «senhor Presidente». Com a convivência passou a ser simplesmente o «sôtor». Não sei o que ele pensaria do porta-voz da Cruz Vermelha, nos dolorosos boletins diários dos últimos dias, o tratar sempre por «Presidente Soares».

Agora que estou a escrever este texto só me lembro de coisas parvas. Por exemplo: quando almoçava com Soares preocupava-me em vestir alguma coisa de jeito – e principamente não usar ténis. Percebi rapidamente que, por muito idoso que já fosse, fazia-lhe confusão mulheres mal-arranjadas. Foram muitos anos ao lado de uma das mulheres mais elegantes do país, Maria de Jesus Barroso. 

Falar de política com Mário Soares era uma coisa extraordinária. Até à morte de Maria Barroso, Soares bebia, respirava e comia política – parecia uma coisa física. Até Maria Barroso morrer foi um homem absolutamente feliz. A fragilidade física pós-encefalite não o parou: só um homem excecional consegue três meses depois de estar à beira da morte organizar uma sessão contra a austeridade do Governo PSD/CDS na Aula Magna. 

Mário Soares gostava muito de almoçar no terraço do Hotel Mundial. Adorava a vista de Lisboa. Depois apanhou lá uma intoxicação e nunca mais voltou. Mais tarde, começou a gostar de ir – também pela vista – ao restaurante moçambicano Zambeze. Nunca podia faltar vinho à refeição. Acho que nos últimos anos só o dr. Mário Soares me conseguia pôr a beber vinho ao almoço. Fazíamos brindes.

Não faço a mínima ideia por que Mário Soares se tornou meu amigo. Eu achava que não merecia. Mário Soares era extraordinariamente doce – e conhecendo a sua biografia política e as suas histórias de vida, a sua doçura parecia-me uma coisa improvável. Perguntava-me sempre pelo meu filho, pelos meus pais – que vivem em Caldas da Rainha, uma cidade que Soares sempre amou e onde viveu durante um ano, em criança, em casa da família Maldonado Freitas. Preocupava-se com a minha saúde, com o facto de eu fumar e até com a minha vida louca, em que o jantar é sempre depois das 11 da noite. 

Soares adorava a vida. Pasmava-se com Lisboa, a sua cidade. Tinha uma veneração pelos pais – cujas fotografias estavam sempre por perto – e pelos filhos. 

Pensei que ia superar a morte de Maria Barroso. Na primeira vez que nos encontrámos depois do falecimento da companheira da vida, falou do seu choque, do sofrimento, da tragédia. Mas, de repente, tentou dar a volta: «Vamos falar de outras coisas», disse. Falámos de política, como sempre. Nesse dia saí da Fundação com a ideia de que Mário Soares iria continuar a sua vida, apesar do sofrimento e do luto. 

Não foi assim. Maria Barroso fazia-lhe uma falta imensa – a horrorosa coincidência de ter morrido de uma queda precisamente ao lado da mesa de refeições da família fazia-o diariamente lembrar o choque. Quando, no dia 13 de dezembro, Soares foi internado, disse aos meus amigos que ele iria resistir, que iria voltar a casa. Durante bastante tempo, confesso, estive em estado de negação.