Melhor do que começar o ano com um banho nas águas frias de Cascais é colocar as questões políticas nacionais na perspetiva certa. Marcelo Rebelo de Sousa despachou ambas com igual à-vontade. Na sua mensagem de ano novo, em oito singelos minutos, o Presidente da República cavou a distância entre os “passos pequenos” do governo e o “muito por fazer” para que tenhamos um Portugal decente para todos. Na antítese entre os “pequenos” passos do governo em 2016 e o “muito” que o país exige que seja feito em 2017 está o desmoronar da narrativa idílica que as esquerdas no poder têm impingido.
Mais do que a denúncia do otimismo irritante, as palavras de Marcelo parecem sugerir um divórcio evidente entre a medida do sucesso do governo e a medida do sucesso do país. São duas coisas incompatíveis. A coerência interna da coligação das esquerdas e a pacificação dos sindicatos e das ruas, imagens de marca deste executivo, têm um preço político. E esse preço é o condicionamento da ação executiva a duas velocidades sequenciais: a marcha-atrás (revertendo medidas) e o ponto morto (deixar ficar como está). Para sobreviver, Costa não pode mexer muito. Mas, não mexendo, o governo nunca produzirá os resultados que Marcelo coloca como meta para o país.
Quem acredita no romance entre Belém e São Bento, interpretando de forma deturpada a política dos afetos, continuará a achar que a mensagem de ano novo do PR é mais uma peça de elogio ao governo – sim, há por aí uns deslumbrados que se convenceram de que todos os portugueses têm obrigação de dar graças diárias pela extraordinária solução de governo que têm. Esses sublinharão os elogios do Presidente à “estabilidade social e política”, ao “clima menos tenso e menos dividido” [tudo coisas das quais, mais do que o governo, foi Marcelo o grande propulsor], aos Orçamentos do Estado que “mereceram aceitação de Bruxelas”, ao facto de se terem compensado “alguns dos mais atingidos pela crise” ou até, imagine-se, ao “cumprimos as obrigações internacionais”. Tudo isto é positivo, sem dúvida. Mas há alguma coisa de excecional nisso? Há alguma destas coisas que não tenha sido garantida ou até ensaiada pelo governo anterior? Não, não há.
Quem, por outro lado, percebe que a atuação de Marcelo Rebelo de Sousa se insere numa lógica de cooperação institucional, equilíbrio de poderes e promoção dos fatores de desenvolvimento do país, vislumbra evidentes sinais de preocupação do PR com o futuro de Portugal. António Costa tem liderado um governo de serviços mínimos. E, no mínimo, o governo até teve nota para passar à tangente. A partir daí é que a porca torce o rabo (e a vaca não voa).
Na mensagem ao país, o PR pressionou os principais pontos fracos do primeiro–ministro António Costa e da sua maioria.
1) A incompetência na frente económica. “O crescimento da nossa economia foi tardio e insuficiente”, diz Marcelo Rebelo de Sousa. Preto no branco, o PR acusa Costa de estar a léguas de concretizar a palavra dada (mas não honrada) de pôr o país a crescer 2,2% em 2016 e 3% para 2017. A política económica do PS provou estar errada e, até 2019, as previsões colocam o crescimento em valores abaixo do que foi conseguido em 2015, no primeiro ano do pós-troika, pelo governo PSD-CDS. Marcelo sabe que as famílias não prosperam e que o país não se endireita a crescer “poucochinho”. E, para além disso, está pouco interessado em passar mais de metade do seu primeiro mandato a lidar com o depressivo e crónico assunto da anemia económica. Indiretamente, o PR sugere uma mudança de rumo para o país “crescer muito mais”.
2) A página da austeridade que não vira. Marcelo aludiu aos “domínios sociais que sofreram com os cortes financeiros”. É o “lado B” do “sucesso” orçamental. A página da austeridade tarda em virar e foram muitos os cortes, numa degradação evidente do Estado social na saúde, na educação e nos serviços do Estado que prejudica a vida de milhões de portugueses. Mas também nos transportes públicos e nas infraestruturas se verificou um retrocesso sem precedentes no investimento. O governo tem de fazer mais.
3) A dívida que não desce. Mesmo louvando a preocupação natural com o “rigor financeiro”, o Presidente conhece o potencial que as medidas do governo têm na engorda da dívida pública, no aumento do custo de financiamento e na nossa fragilidade perante acontecimentos externos. “A dívida pública permanece muito elevada”, afirmou o PR. Mais um aviso à navegação para 2017.
4) A ausência de uma visão para o país. Costa é um líder preocupado com eleições e clientelas. Marcelo não quer um país focado na “gestão do imediato”. Quer Portugal a olhar para a “gestão a prazo”. Mas se, para o primeiro-ministro, a semana que vem já é o longo prazo, o que o PR quer é que Costa não seja Costa.
Marcelo Rebelo de Sousa começou o ano novo mostrando quais são as linhas vermelhas que não devem ser cruzadas sob pena de, em 2017, em vez de caminharmos para o futuro, darmos meia volta para o passado.
Por este caminho apenas, o PR diz claramente que não vamos lá. É preciso juntar à paz social e ao clima de compromisso a capacidade de ação e a vontade transformadora que nos guiarão ao crescimento.
Com os acordos programáticos das esquerdas esgotados e com os seus ganhos catalogados, Marcelo traçou o fim da geringonça. Com os objetivos que delineou, de mais crescimento e de mais reforma, impediu que ela se transforme numa qualquer outra coisa desconjuntada, numa qualquer caranguejola que finge que nos governa sem nos tirar do mesmo lugar.
Escreve à quarta-feira