Da indignação e da vergonha


Por cada crime contra a humanidade, a comunidade internacional anuncia que estas coisas não podem voltar a acontecer. Mas elas repetem-se


A comunidade internacional, a ONU, a União Europeia e as principais organizações não governamentais reagem expressando regularmente a sua preocupação. Uma espécie de mantra que nos conduz a mente criando-nos a sensação, ainda que neste caso propositadamente falsa, de que o compromisso e envolvimento internacional está de facto no horizonte e na agenda.

É quase sempre assim. Por cada crime contra a humanidade, por cada desrespeito pelos mais básicos direitos do homem, por cada violação dos pilares fundacionais das nações livres, a comunidade internacional anuncia que estas coisas não podem voltar a acontecer. Mas o que é facto é voltam sempre a acontecer numa escalada de violência cada vez maior.

Foi assim, a titulo de exemplo, com o massacre de Srebrenica na Bósnia com o assassinato de mais de oito mil bósnios muçulmanos, foi assim no desastre no Ruanda e volta a ser assim na maior manifestação de desumanidade que temos assistido na Síria nestes já longos seis anos de guerra civil.

A ascensão de al-Assad ao poder transformou aquele território num palco infernal de violações permanentes contra todos os valores que fazem de nós Homens livres. As perseguições a ativistas políticos e de direitos humanos, a homens de leis, a jornalistas ou a bloggers assim como a morte de mais de onze mil prisioneiros políticos naquele regime, e que se tornaram conhecidas pelas fotos de “Caeser”, o polícia que as divulgou, são parte da confirmação desta nova espécie de tirania moderna que a titulo de um desígnio internacional de combate ao terrorismo e de um promíscuo relacionamento económico com o mundo livre ganham a aceitação, ou no limite a indiferença, das elites da comunidade internacional.

É evidente que o combate ao terrorismo é crucial. E deve ser feito numa lógica global e integrada – que não acontece completamente – face ao risco global que representa. Mas podem as Nações livres e democráticas combater o terrorismo branqueando as ações de outro terrorista? Não podem.

Esta encenação de libertação dos civis de Alepo no passado dia 16 não passou disso mesmo. De uma encenação. Bastaram 24 horas para que os relatos de bombardeamentos e explosões perto do circuito da caravana de cerca de trinta viaturas se fizessem ouvir.

O populismo de Assad, e dos seus apoiantes internacionais, as suas repugnantes ações não podem, com o pretexto de um falso combate ao terrorismo, servir de pretexto para validar a barbárie contra todos aqueles que veem com outros olhos o regime deste oftalmologista de profissão.

A inação da elite mundial perante a situação de Aleppo ou até mesmo a sua eventual reconquista não pode sob nenhuma perspetiva representar, como se tem descrito, um ponto de viragem. Ela apenas abrirá uma nova etapa na matança levada a cabo pelo regime de Assad e das suas milícias estrangeiras.

O populismo não pode ser combatido com concessões, mas unicamente com os valores sociais conquistados e com duras penas para quem transgride sem perdão os valores que sustentam a tal comunidade internacional.

Lembremo-nos das várias imagens a que temos assistido da desumanização do conflito. Da destruição e da morte de uma população que desespera por um fim. Recordemos a imagem do menino Omran Daqneesh. Aquele menino resgatado dos escombros que de cara ensanguentada sentado numa ambulância se mantinha de olhar fixo em silêncio enquanto, com a sua pequena mão, limpava o sangue que lhe escorria pelo rosto.

Ninguém são e com o mínimo espirito de humanidade revisita estas imagens sem um profundo aperto no peito. Na verdade, são apenas homens, mulheres e crianças. Tal como nós ou os nossos filhos. O que se passa em Aleppo é insuportável de se olhar.

Mas essa é a questão. Omran, de olhar fixo e sangue no rosto, olha-nos bem nos olhos pedindo-nos a sua salvação. Pede-nos que olhemos para ele. Nós, distantes e protegidos, não fizemos nada para ajudar. O mínimo que deveríamos fazer é voltar a olhar. Olhar vezes sem conta até nos insurgirmos definitivamente contra a inação do mundo perante aquele massacre.