Fidel Castro e os monstros na tua cabeça


Cuba sofrida, mas obstinadamente alegre e corajosa gerou a sociedade latino americana menos injusta


O diferendo entre os Estados Unidos e Cuba têm raízes históricas e as razões geoestratégicas e económicas que sustentaram a ambição do império em apoderar-se da maior ilha do Caribe.

Em 1832 o secretário de estado norte-americano John Quincy escrevia: “Existem leis politicas igual que existem leis da física, Cuba, por força, separada da sua artificial ligação com Espanha, incapaz de sustentar-se por si mesma, só pode gravitar até à união americana, nós em nome das leis da natureza, não a podemos rechaçar. Cuba será nossa”

Quando os guerrilheiros triunfantes comandados por Fidel, entraram em La Habana em Janeiro de 1959, uma onda de entusiasmo tomou conta da ilha. Não era para menos. Cuba, na realidade, tinha passado do domínio espanhol para o neocolonialismo dos EEUU.

O império yanqui controlava 70% da produção açucareira e tinha o monopólio de quase todos los sectores produtivos, minas, industria, transportes e comunicações. A brutal ditadura do sargento Batista foi a gota que transbordou o copo.

Cuba estava entregue à mafia que, protegidos por Batista, transformava a ilha em território privado de crime, de tráfico de droga, prostituição e jogo.

A Revolução transbordou ilusão e sonho e de seguida contagiou o resto de América e do mundo inspirando um sem fim de movimentos guerrilheiros que de pronto sentiram que era possível fazer frente a Washington e derrotar os tiranos.

Foi o que Vazquéz Montalbán chamou a idade da inocência, o período em que “Deus entro em Havana”

Nem a Revolução Bolchevique que tanto entusiasmou John Reed, nem o México revolucionário pelo que se fascinaram André Bretón ou Trotski, nem a epopeia Chinesa do camarada Mao, elogiada por John Lennon e Andry Warhol, motivaram semelhante paixão durante tantas décadas.

Com Fidel morre um dos grandes protagonistas do século XX, uma personagem histórica, um símbolo do sonho revolucionário, alguém sem o qual não se pode explicar a história mundial recente.

A influencia da revolução Cubana, dirigida por si fez-se sentir desde a Palestina a toda a América latina, desde a Europa ao Vietname, e em Africa, onde contribuiu de forma decisiva no apoio aos movimentos de libertação e independência.

Um exemplo disso, foi a intervenção militar cubana na batalha de Luanda e posteriormente em Cuito Cuanaval em 1987. A derrota dos sul-africanos racistas levou à definitiva independência da Namíbia e à posterior libertação de Nelson Mandela.

Três anos depois, Mandela declarou “Foi uma vitória para toda a Africa e alterou para sempre o mapa do continente” E Kissinger nas suas memórias escreveu: “Sem a intervenção de Fidel e dos cubanos abolição do apartheid não teria acontecido nesse tempo”

Os arquivos do Departamento de Estado, de CIA, do FBI e do Pentágono da época, hoje abertos, não deixam dúvidas: foi a obsessão da Administração Eisenhower com o comunismo que empurrou Fidel e a Revolução para o bloco soviético e precipitou a mais grave crise da Guerra Fria.

A 20 de outubro de 1960, em vésperas das presidenciais que opuseram Kennedy a Nixon, os EUA impõem o embargo total a Cuba. Foi a “Tempestade sobre o Açúcar” como lhe chamaram Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

Avaliar e fazer tese sobre a intervenção de Fidel, a sua liderança, o seu papel histórico, a sua influencia internacional, os seus êxitos e derrotas, as seus erros e vitórias, sem querer considerar as circunstancias politicas da Guerra Fria, o trágico Bloqueio económico – 225 mil milhões de dólares de prejuízo para a economia cubana – as particularidades geográficas, os elementos culturais, as singularidades religiosas e sociológicas, e as especificas relações com os EUA, é desenvolver um exercício desonesto exclusivamente suportado pelo o ódio ideológico sem mais.

Cuba foi sujeita durante décadas a uma guerra secreta organizada pelos EUA, com centenas de operações, planos de destabilização, destruição de infraestruturas, bombas em aviões de turismo, bombas em hotéis, destruição de colheitas, propagação de epidemias.

A Revolução foi o que pôde ser e não o que quis ser. O muro entre o desejo e a realidade foi-se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia á maneira cubana, obrigou a militarização da sociedade e perpetuou a burocracia paralisadora.

Mas apesar de todas as agressões, Cuba sofrida, mas obstinadamente alegre e corajosa gerou a sociedade latino americana menos injusta. Por isso, esta noite muitos milhões de crianças vão adormecer com fome, mas nenhuma delas será cubana.

Esta foi a façanha e sacrifício de todo um povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e da persistência de um imprescindível chamado Fidel.

A mais completa e estruturada analise feita ao papel de Fidel de Castro, foi a realizada pelo o professor e cientista politico João Adelino Maltez, na RTP 1, que apesar de se posicionar á direita, demonstrou de como de forma inteligente e informada se pode fazer uma ponderação justa e desapaixonada dos factos.

Não querer interpretar a história e os seus intervenientes sob a necessária reflexão do conjunto dos factos escrutinados, e dos tempos vividos, é redutor e medíocre, não chega a ser a expressão de uma ideia, é só má propaganda.

Gritar com júbilo “Viva a Morte” como se encontrasse nessa inevitabilidade humana, um terrível alivio para a toda a sua ignorância e pavores, é alimentar os monstros que o devoram alimentados no preconceito e no ódio.

Percebo que seja um alivio, que torne tudo à sua volta mais simples, mas não o retira da obscuridade em que habitam os medos e se aconchegam os monstros.

 

Consultor de comunicação

Escreve às quintas-feiras