Vivemos tempos intrigantes no panorama político nacional e internacional. A eleição de Donald Trump como presidente dos EUA apelou, em certa medida, a uma certa nostalgia da figura do homem forte. Do líder que nos interpela a um rumo de mudança e mobilização social capaz de uma superação quase divina perante as dificuldades e riscos globais que, como consequência negativa da globalização e integração transnacional, representam o maior de todos os desafios.
Ainda que partilhe da opinião daqueles que acham que os discursos eleitoralistas de Trump serão impiedosamente transmutados pela magnitude e preponderância daquela cadeira na Sala Oval, é inquestionável que a sua eleição revela uma tendência globalmente generalizada. As pessoas estão cansadas do “establishment” e de tudo o que ele tem de nocivo e indecente, que nos torna pequenos e impotentes perante tantos poderes, tantos conluios e tantos intocáveis. O “establishment”, ou “sistema”, como comummente referimos, não é mais do que a ordem política, económica e social que nos tem definido enquanto Estados–nação e que tem revelado uma incomensurável incapacidade de transformação e unificação social.
Aliás, ainda que mal comparado nos discursos e nas personalidades, a própria primeira eleição de Obama já revelava uma certa necessidade de mudança em relação aos dogmas do tal “establishment” e à forma como ele cavalgava ferozmente, aprofundando as desigualdades evidentes do povo norte-americano.
Na Europa não é diferente. Assistimos, ainda com uma certa impassividade, ao desagregar paulatino dos fundamentos que constituíram o projeto europeu e que nos tornam, enquanto povos organizados na dupla dimensão individual e coletiva, cada vez mais vulneráveis aos permanentes atropelos políticos e económicos.
É evidente que é prematuro afirmar que o projeto europeu falhou completamente. Mas já não o é afirmar que, continuando neste rumo lesivo da construção social que a sua génese ambicionou, ele caminha em passos relativamente largos para esse fim.
No plano mundial, mas sobretudo europeu, considerando a sua posição geográfica e todas as fragilidades politicas, económicas e sociais, vivemos, como bem referiu Ulrich Beck, numa “sociedade de risco mundial”. Quer isto dizer que as dimensões e fronteiras dos tradicionais Estados-nação que constituem esta união se alargaram graças a esta nova dimensão de modernidade, aos riscos que ela comporta e às incertezas quanto à sua manifestação.
É cada vez mais evidente que os atores políticos, de uma maneira geral, não progrediram da mesma forma e ao mesmo ritmo que progrediu a própria organização político-económica que eles próprios criaram e aprofundaram. Pode parecer um paradoxo, mas não é. O que esta ideia pretende demonstrar é que se torna manifesto que a atuação individual da generalidade dos líderes europeus não condiz com os discursos que debitam sobre a realidade global em que eles próprios, e os seus povos, se inserem. Ninguém compreende que a França, só pelo facto de ser a França, como referiu Juncker, tenha regras diferenciadas em relação ao seu défice quando sobre outros países paira um conjunto de sanções que a própria Comissão Europeia ameaça aplicar. Como ninguém compreende que a segurança da Europa face aos novos fenómenos de terrorismo e criminalidade organizada seja objeto de um discurso de atuação transnacional quando o que a prática nos demonstra é precisamente o oposto, ainda que isso represente um insucesso garantido neste combate.
A identidade fundadora do projeto europeu está a perder-se. Nenhum líder político tem o arrojo de assumir o inevitável para que a Europa, tal como a conhecemos, tenha sucesso. O impulso de assumir que, mais importante do que as liberdades individuais, neste contexto de organização transnacional, são as liberdades coletivas e que, sem essa audácia de mudança, tudo falhará.