Esta novela sobre as declarações de rendimentos dos administradores da Caixa Geral de Depósitos é só mais um triste espetáculo apenas possível num país onde reina uma certa superioridade javarda de um grupo de artistas que acha que se coloca numa espécie de pedestal divino onde tudo lhe é permitido.
O desplante e a ignomínia tomaram conta disto. Aqueles que achavam que era Salgado o único “Dono Disto Tudo” têm todos os dias a possibilidade de constatar que, afinal, pulula por aí um conjunto alargado de canalhas que não só procuram ocupar esse lugar como insistem em gozar com o pagode. Gente que se acha. Gente para quem a pátria é o dinheiro e que se aproveita do seu status para alimentar relações de poder que a colocam acima das obrigações de qualquer cidadão honrado.
António Domingues protagoniza este estado de coisas. Não é possível esperar nada de bom de um tipo que, ao convite para dirigir o banco público, para servir o país num momento difícil de viragem, apenas o aceite com a condição de ganhar mais de 400 mil euros por ano, acrescidos de uma remuneração variável que pode atingir os 50% da sua remuneração anual. Um salário que pode superar os 600 mil euros anuais. Sabemos que a situação da Caixa não é a melhor, mas num ano em que o banco público apresentou resultados negativos perto dos 190 milhões de euros, reduziu quase 50 balcões e libertou mais de 500 funcionários, admite-se que o governo promova uma administração com este tipo de remunerações? Não se admite.
Pior, admite-se que haja a suspeição da existência de um acordo (que ainda não foi categoricamente desmentido por ninguém) para que os administradores da Caixa estivessem dispensados de apresentar as suas declarações de rendimentos? Também não se admite.
Longe vão os tempos de Domingues como fervoroso militante do MRPP. Um Domingues de cabelo comprido e barras de ferro escondidas nas meias. Hoje, dizem, é um homem sem ideologia. Nada que uma gravata Hermès, um fato Canali e alguns milhões no bolso não tratem de resolver. Aliás, não deixa de ser curioso o percurso de alguns filhos do MRPP. Desde a Caixa ao Goldman Sachs, há todo um longo percurso de indivíduos a registar.
Mas então e o governo, onde fica no meio desta trapalhada toda? Onde se coloca este governo patriótico e de esquerda apoiado nas suas decisões por comunistas amigos do povo e bloquistas combatentes das injustiças? Em lado nenhum. Lava as mãos como se não fosse sua a responsabilidade de pôr um ponto final nesta situação.
Mas, na verdade, não é assim. Pior que Domingues que, por muito condenável que seja a sua exigência, está apenas a pensar em si, já o governo deveria de ter a obrigação de pensar naqueles que representa e no sinal que está a passar ao permitir que esta novela se arraste por todo este tempo.
Afinal, em última instância, a responsabilidade é mesmo do governo. Nós temos o direito de saber que tipo de compromissos e em que circunstâncias foram celebrados entre os administradores do banco público e o governo. Recusar estes esclarecimentos e andar a empurrar a questão com a barriga revela uma falta de ética tremenda e uma desfaçatez que não pode passar impune. Não vale a pena o governo mandar um secretário de Estado qualquer, de sorrisinho cínico na boca, vir dizer-nos que não há nenhum compromisso assumido em relação à questão. É preciso que o patriotismo de esquerda se exalte e torne transparente esta questão. Sem esquemas e sem rodeios. Tudo clarinho para que saibamos de uma vez por todas com quem estamos a lidar. Do lado do governo e do lado da Caixa. Em todo o caso, quem diria que este episódio pudesse ser protagonizado por um governo de esquerda e um tipo de foi do MRPP?