Agora que ele se foi, há certamente muitos ombros onde a Morte pode vir chorar. Aos 82 anos, Leonard Cohen deixou claro que estava preparado para ela, e o seu adeus foi tão doce quanto triste, como as suas melhores canções. A saúde abandonara-o, não foi só uma a causa, antes uma série de problemas, o que não o impediu de fazer as malas, deixar tudo tratado: «É um cliché, mas é subestimado como um analgésico a todos os níveis», disse este verão numa longa entrevista ao editor da New Yorker, David Remnick. «Pores a casa em ordem, se puderes fazê-lo, é uma das mais reconfortantes actividades, e os benefícios são incalculáveis».
Em agosto, a carta que escreveu a Marianne Ihlen, sua musa e amante na ilha grega de Hydra, nos anos 1960, e que morreu a 28 julho, foi lida pelo mundo e soou alto como o mais tocante final para a sua elegia dos amantes, que terminava com as palavras «encontramo-nos no caminho».
Que ninguém diga que não soube encontrar através da dor e dentro da escuridão um caminho, ninguém diga que o de Cohen não foi o mais perfeito adeus.
O poeta e romancista canadiano, que soube inscrever-se entre a influência de um Allen Ginsberg mais contido e lírico, e o humor e auto-ironia de Frank O’Hara, deixou para trás uma promissora carreira literária, tornando-se o mais sedutor dos escritores e compositores de canções, uma figura de culto que escavou as galerias da intimidade hoje povoadas pelas sucessivas gerações que seguiram a sua voz. Com uma carreira musical que se estende por quase cinco décadas, Cohen teve as poucas palavras para surpreender os temas definitivos do Homem, do amor à fé, desespero e exaltação, solidão e cumplicidade, guerra e política.
Bob Dylan disse-lhe certa vez que o considerava o seu grande rival entre os inquilinos da Torre da Canção. Por sua vez, Cohen teve a mais feliz reacção quando o Nobel da Literatura foi atribuído a Dylan, vendo a ironia de a Academia Sueca querer «dar uma medalha ao monte Evereste por ser a montanha mais alta».
Podia levar anos a escrever uma canção
Depois de, em 1967, e com 33 anos ter lançado o seu primeiro álbum – Songs of Leonard Cohen, ainda hoje considerado um álbum seminal, com músicas como Suzanne, Winter Lady ou So Long, Marianne –, Cohen debateu-se durante anos com problemas de ansiedade, recorrendo a álcool e drogas, tendo chegado a afundar-se em terríveis depressões antes de finalmente se virar para o budismo, vivendo em isolamento entre 1994 e 1999 num pequeno mosteiro em Los Angeles.
O canadiano deixa um lendário cancioneiro que deu origem a múltiplas versões, mais de 2000 gravações de músicos das mais variadas tradições. Os cantores folk, como Judy Collins e Tim Hardin, foram os seus primeiros prosélitos, e mais tarde o culto espalhou-se, vindo a abranger todo o espectro da música popular, com Cohen a entrar no repertório de bandas como os U2 ou os REM, e músicos como Nina Simone, Aretha Franklin, Joe Cocker, Jeff Buckley, Rufus Wainright, Elton John, Tori Amos, Lana del Rey…
Ao contrário de Dylan, que terá escrito algumas das suas mais icónicas canções num quarto de hora ou menos, numa espécie de transe, Cohen podia levar meses e até anos a escrever e compor as suas canções. Hallelujah, porventura a mais conhecida de todas, foi evoluindo ao longo de uma década. Um período de maturação que fez dele o maestro de uma orquestra difusa de solitários músicos que foram alargando a dimensão e profundida desta balada meditativa, fazendo dela um cântico religioso capaz de uma comunhão que une crentes e descrentes. Escrita para um álbum de 1984 e rejeitada pela editora discográfica por lhe faltar apelo comercial, conquistou o mundo uma década mais tarde através da versão de Jeff Buckley. Desde então, como nota o New York Times, mais de 200 artistas gravaram a canção. Dylan foi um deles.
«A poesia é apenas cinza»
Com os anos, a voz pequena de Cohen desfez-se de asas e, grave, segurou-se ao bordão, tantas vezes coxeando num sussurro, era cada vez mais o instrumento de uma despojada harmonia, ao lado da guitarra com os seus acordes firmes mas simples ou das notas de um órgão que podia passar pelo companheiro de qualquer artista de covers numa triste festa de salão. Só que, neste caso, tratava-se não de mais um seguidor, mas do mestre. E se Cohen só relutantemente aceitou o estatuto de estrela pop de que acabou por gozar, conquistou também uma aura ascética e teve sempre um instinto para a nuance, para a contenção, que fez dele um génio entre a sugestão e a omissão. «A poesia é apenas a prova da vida», escreveu. «Se a tua vida está a queimar bem, a poesia é apenas a cinza».
Nascido em Montreal, em 1934, Leonard Norman Cohen cresceu no próspero súburbio de Westmount. O pai, de origem polaca, era dono de uma loja de roupa com bastante sucesso. Morreu quando Cohen tinha 9 anos, mas deixou-lhe um pequeno fundo que o libertou para prosseguir as suas ambições artísticas. A mãe era uma enfermeira de ascendência lituana, filha de um rabino, daí a forte influência da fé judaica na formação do poeta.
Dívidas e tournées
Em 2008, Cohen entrou para o Rock and Roll hall of Fame, tendo sido descrito como «um dos poucos artistas no reino da música popular que podem verdadeiramente ser chamados de poetas», e foi celebrada a forma como «elevou a fasquia da escrita de letras de canções». Apesar do sucesso e de tantas das suas canções serem marcos do século XX, gravou apenas 14 álbuns em estúdio e só o primeiro alcançou o Ouro nos EUA, com vendas de 500 mil cópias. O sucesso comercial foi, portanto, bastante modesto quando comparado com a sua influência.
Em 2004, com mais de 70 anos, sofreu um duro golpe, depois da sua manager Kelley Lynch lhe ter roubado cinco milhões de dólares, deixando-lhe apenas 150 mil dólares e enormes dívidas ao fisco, o que o obrigou a hipotecar a casa e regressar aos palcos. Em 2006, um tribunal condenou Lynch a pagar uma indemnização de 9,5 milhões de dólares a Cohen, mas este nunca viu um tostão. Assim, em 2008, depois de uma ausência de 15 anos, o poeta percorreu os palcos do mundo, passando quatro vezes por Portugal em sucessivas tournées, com o última a terminar em 2013.
O eterno ‘Ladies Man’ nunca se casou, foi tendo numerosas relações de curta duração, e algumas mais duradouras, tendo escrito sobre elas. Da relação com a fotógrafa e artista Suzanne Elrod durante a década de 1970, nasceram os seus dois filhos, Lorca e Adam. O último seguiu as pisadas do pai, e ajudou-o na produção do seu último álbum, lançado este ano: You Want It Darker. «I’m ready, my Lord», canta Cohen. A voz acabou. Fica o caminho para a sua vida secreta.