Bastaria estender o braço para tocar-lhes, Solange e Clara, Beatriz e Sara. Mas quietos, o perigo inverso de ser alguma delas a violar essa distância é o que começa a inquietar-nos. Não temos o escuro como recuo para deixar a consciência tocar e fugir, resistir à cena. Não há defesas, o público envolve o palco como a um ringue, e é obrigado a enfrentar-se, rever-se e vigiar-se nas poses largadas nas cadeiras, ou perplexas, enquanto a ação se desenrola num mínimo vão ou cela de prisão, um poço a que vamos ser obrigados a descer. No espetáculo que estreia hoje no Teatro Nacional D. Maria II, cedo fica muito claro como o encenador, Marco Martins, teve a maior atenção às reservas de Jean Genet quanto ao teatro ocidental, e como, em certo sentido, é uma negociação e, finalmente, uma resposta.
Notando como mesmo as peças mais belas acabam por ganhar um ar de “fantochadas, mascaradas, e não de cerimónias”, Genet, que escreveu o texto desta peça na prisão, exigia aos atores “coragem e renúncia”, que se impedissem de ceder àquele que julgava o ponto de partida da sua profissão: o exibicionismo. Por isso, desdenha do naturalismo e prefere um tom declamatório, impedindo que a mais grave tensão das suas palavras possa ser abolida pela “tolice sobranceira dos comediantes e das pessoas do teatro”. Numa carta endereçada a Jean-Jacques Pauvert, que editou num volume duas versões da peça “Les Bonnes” (As Criadas), o poeta lembra como “fatigado, incapaz de viver em atos, o mundo atual também arrasta o ator ocidental a esta vulgaridade, encarregando-o, não de representar por ele temas heróicos, mas personagens inventadas”.
Depois de nos sentarmos a peça ainda vai nascer, e o que primeiro vemos são ainda ensaios. Debaixo de um intenso foco de luz branca, como se uma morgue, temos as três atrizes: caídas no chão, Beatriz Batarda e Sara Carinhas hão de ser as criadas, e Luísa Cruz, sentada, irá encarnar a Senhora. Na verdade, a patroa ser-nos-á tantas mais vezes evocada pelas criadas, que a constroem e desfazem no altar sacrificial das suas ferozes reencenações do dia-a-dia humilhante de serventes.
Excertos da carta de Genet ao editor são-nos lidos por Luísa Cruz, num comentário que por si só nos torna conscientes do lado preparatório deste “ritual”. Neles o autor expressa a sua frustração por ter produzido um texto encomendado “por um ator célebre no seu tempo” e que assim foi escrito “por vaidade mas com tédio”. A encenação desta peça parte dessa desilusão, e com o autor repudia o teatro que “reflete com excessiva exatidão o mundo visível” para se colocar num plano algo espetral, retirando a ênfase à ação, que de resto partia de uma história verídica: o crime das irmãs Papin, que mataram a patroa e a filha, em Le Mans, vazando-lhes os olhos e esquartejando-lhes o corpo. Requintes escabrosos que encheram o prato da sociedade francesa da época, que seguiu o caso com o típico pavor deliciado com que ergue os seus heróis malditos.
O caso também mereceu a atenção dos intelectuais, mas Genet aproveita dele o exemplo: “Malditas ou não, estas criadas são monstros como nós, quando sonhamos isto ou aquilo.” Não só isso como exclui o interesse de se ver esta peça na limitação de um qualquer sentido político imediato – “não se trata de argumentar em defesa do destino dos criados”, garante o autor, adiantando que para isso deverá existir já “um sindicato de pessoal doméstico”.
Mas então qual é o repto que lança Genet quando voltou a refletir sobre esta peça originalmente escrita em 1947, e ao qual esta encenação soube dar uma resposta tão ousada? Acusando o teatro moderno de não passar de um divertimento, recusando tudo o que afetasse positivamente a moral burguesa, o poeta quis reclamar para o espaço de criação teatral esse grau subversivo da arte, que leva a que a sua função seja a de “substituir a fé religiosa pela eficácia da beleza”, sendo que esta beleza “deve ter, pelo menos, a força de um poema, quer dizer, de um crime”.
Fiel às propostas de encenação que Genet fez no texto “Como interpretar ‘Les Bonnnes’”,– incluído no volume “No Sentido da Noite”, Sistema Solar –, Martins consegue obter a deslocação no espaço e no tempo que o poeta desejava, sem no entanto ir ao ponto de esvaziar as personagens, que Genet considerava serem já só figuras do hábito, que se aguentavam por mera “convenção psicológica”. É neste ponto que o trabalho do encenador estaria destinado ao fracasso, não contasse com atrizes capazes de um compromisso tão perturbador com as suas personagens. Se o autor da peça admite que se terá “abandonado sem coragem a uma experiência destituída de riscos e perigos”, incitado a isso “por esse universo do espetáculo que se satisfaz com aproximações”, Beatriz e Sara são em palco a perfeita convicção dos seus gestos, e mais do que as personagens, não deixam de ser elas próprias criadas-atrizes, servindo a carne à metáfora que o poeta pretendia, pela forma corajosa como se entregam a um estado de ebriedade alimentado pela exaustão, claramente a mais pesada das drogas existenciais, dando mais e mais corda a um desespero que nos faz descer fundo ao poço onde brilha essa imensa razão que leva alguém a um ato monstruoso.
Como sublinha Marco Martins, há algo de reconstituição da cena de um crime. Desde o início nos é confessado o intuito de o cometer, só falta que o próprio público possa compreender e, até, sentir-se cúmplice deste. As duas irmãs servem-se das suas dolorosas encenações, em que se revezam no papel da senhora, e vão para lá de um exorcismo da sua condição, para insuflarem o ódio, se “galvanizarem”, e irem até ao fim com o seu plano.
Estas atrizes tornam-se as oficiantes de um ritual que alcança um nível de fervor obsceno, como preparam a cena, saem da inanição inicial para se desenharem uma outra sobre o contorno da linha de giz como se estivessem à partida já condenadas. O que nos vão confidenciar é a fatalidade dos nossos sonhos a partir do momento em que enfrentamos a nossa condição. Genet sonhou com um espetáculo que permitisse ao público viver uma experiência de comunhão: “Não conheço peças que unam durante uma hora, que seja, os espetadores. Pelo contrário, isolam-nos ainda mais”. Beatriz e Sara, descem muito baixo, não produzem uma falsa elevação de Solange e Clara, vivem através delas um horror próprio, e mais do que renunciar “à construção da vedeta”, destroem-na por completo. Nem por um momento damos por nós a admirá-las, porque não nos autorizam a distanciarmo-nos do que estão a criar.
Assim, é através da própria artificialidade, do tom declamatório, do exagero trágico, que, por um lado, e como ambicionava Genet, trazem “o teatro ao teatro” e, por outro, vão além disso. Estas atrizes que tantas vezes nos encaram, tornam o espaço de tal modo íntimo que só de olhá-las nos sentimos sufocar. Do seu chão onde desenham a giz as coisas – cama, janela, guarda-fatos, porta, toucador, etc. –, vestem e despem as personagens, que também se vestem e despem, deformando-se monstruosamente. E deste modo representam e não, são a exposição de um horror que ultrapassa a sua condição domesticada, o que torna impossível assistir a este espetáculo como um divertimento.
É neste ponto que nos informa sobre a dose de tragédia de que somos capazes na arte. E assim subscreve a acusação feita por Genet aos seus leitores: “Suportais o heroísmo quando é domesticado (refiro, de passagem, que os vossos sedutores, os vossos artistas, domesticam-no em vossa honra, embora o abordem de longe). Ignorais o heroísmo na sua verdadeira e carnal natureza, e que ele sofre num plano quotidiano que é também o vosso. A verdadeira grandeza só vos aflora. Costumais ignorá-la e preferis outra que a imita.”