A extraordinária forma com que as pessoas crescidas fazem quimioterapia


Fecho os olhos. Tento imaginar-me a fazer quimioterapia, com a idade que tenho atualmente. Quero tentar levar-me para lá. Como é que seria a minha reação? Qual era a primeira coisa que faria?


Apesar de já ter feito o tratamento de quimioterapia há muitos anos, ainda há coisas que não consigo esquecer, como o cheiro da dita. Sempre que reencontro esse cheiro em algum objeto (antigamente, vejam a loucura, parecia que este era similar ao das baterias dos telemóveis), volto a enjoar. É incrível como um odor pode infiltrar-se para sempre em nós e sempre que o sentimos, somos levados a reviver memórias antigas. Mas mesmo que as minhas narinas tenham registado o cheiro da quimioterapia (que provavelmente era apenas o aroma do meu medo) e de enjoaar muito, não me lembro de ter vomitado, de facto, durante os tratamentos. Talvez isso tenha acontecido, porque sempre odiei desperdiçar comida.

Certamente, se hoje estivesse a viver a fase da quimio-pelas-veias-abaixo, a minha perspetiva das coisas, dos momentos, da própria doença seria diferente. Por mais que acredite que a minha essência se mantivesse a mesma – uma boa disposição contínua, talvez por estar sempre alienada do mundo, com metade do corpo fora da realidade – não me parece que os meus vinte e seis anos de hoje, me permitissem agir como quando tinha os treze anos da altura.

Fecho os olhos. Tento imaginar-me a fazer quimioterapia, com a idade que tenho atualmente. Quero tentar levar-me para lá. Como é que seria a minha reação? Qual era a primeira coisa que faria?

Consigo ver-me naturalmente nervosa, não tanto por iniciar este ciclo, mas mais por perceber que o cadeirão que parece estar mais isolado do resto do mundo, se encontra do outro lado da sala, onde vou fazer o tratamento. Aos 26 anos, já estamos batidas nas conversas de circunstância e nem penses que vou deixar que me roubem aquelas quatro horas que tenho só para mim, a falar sobre todos os cancros do universo, com toda a gente que esteja ali (com o tempo, fiquei mais bicho do mato do que já era, por isso, de certeza que fugir dos fretes, seria a minha primeira preocupação).

Ok, cadeirão à vista. Depois de praticamente me ter mandado, à jogadora de rugby para cima do sofá, já me estou a ver a tirar a almofada que trouxe na mala, a pedir uma manta para aquecer as perninhas e só não peço um panaché porque não me parece que o hospital esteja equipado para tanto.

Siga. Enquanto a enfermeira não vem, já virei a carteira ao contrário e espalhei todos os papéis por cima das pernas. Dividi as faturas dos bilhetes de metro, organizei os documentos e pedi à senhora do lado, que me colocasse as bolas de papel que fiz, no lixo, enquanto me arrependo de ter puxado conversa tão cedo.

No fim de olhar, orgulhosa, para a minha carteira (que perdeu dez quilos e que finalmente está arrumada), apercebo-me que o tratamento já começou e eu ainda sem decidir que revista de calhandrice irei ler primeiro. Caraças, o tempo está a passar e ainda não comecei a leitura. Demoro-me em notícias que não interessam a ninguém, mas por algum motivo, me sabem bem ler, peço o meu chá à voluntária que ali passou e respiro fundo, muitas vezes, para controlar o enjoo. Não penso em vomitar, que não me apetece levantar dali porque estou bem confortável e tenho pavor de ceder o cadeirão a quem quer que seja e olho, várias vezes, preocupada para o relógio – com esta brincadeira, já se passou uma hora e eu ainda com tanto para fazer.

Naquele tempinho só meu, já limei as unhas, telefonei às dez pessoas que andava a prometer ligar há, pelo menos, dez meses, mudei o toque de telemóvel para uma música que tem tanto de alegre como de pirosa, fiz a lista de compras e, finalmente, cumpri o meu desejo antigo e fiz a sesta prometida. Assumo. Não pude também deixar de me emocionar com o humor dos enfermeiros, a resiliência dos meus companheiros que, como eu, estão mais bem-dispostos do que se esperava. Acho que é sempre assim.

Ainda de olhos fechados, imagino a enfermeira a dirigir-se a mim, a tocar-me levemente no braço e a avisar-me:

“Minha querida, acabou por hoje”.

Aflita, reajo àquela ordem de expulsão com a indignação que me parece absolutamente apropriada ao momento:

“Acabou? Mas acabou como? Ainda me faltam pintar três unhas!”

E saio de lá muito aborrecida, porque o único tempo que tinha só para mim, passou num instante e quase nem dei por isso.

Abro os olhos. Apercebo-me que esta talvez seja a piada de crescermos. Podemos perder uma certa inocência por sabermos mais do que queríamos, mas também, com o tempo, aprendemos a relativizar os problemas, conseguimos tirar partido das situações mais complicadas, e sobretudo, aproveitamos todos os momentos para fazermos as tarefas atrasadas que tínhamos para fazer.

E no meio desta proeza, ainda temos tempo para derrotar o cancro.

 

 

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