O cancro vai nu, com o embrulho aos saltos, pendurado, como se valesse alguma coisa. Vai gingão, cagão, confiante, desfila pelas ruas e toca à campainha de vários prédios. Não lhes distingue a porta nem o andar, nem se é residência de pobre ou de rico, porque o cancro bate em qualquer casa. Muitos, coitados, enganados, estão lá e recebem-no, sem nunca contarem com a malvadez do safado que invade (ainda por cima calçado) a morada de quem nunca pensou.
Entra. Vem com vontade de intimidar e apavora, ameaçando partir tudo o que apanhar – porque, para ele, quanto mais barulho e desarrumação fizer, melhor.
A família, com medo, demora a encará-lo, mas às vezes também tem vergonha porque, afinal, o gajo está nu – despido de vergonha e de culpa. E durante esse tempo de choque, o cancro parece avassalador. Incombatível. Todos os que o encontram pela primeira vez sentem esse impacto violento e não há como fugir a isso. A verdade é que faz mesmo impressão olhá-lo no primeiro momento, de frente, mas depois de ele ter entrado em casa e de já ter partido algumas jarras, não há mesmo volta a dar – há que aceitar a intromissão do cancro, ter a capacidade de raciocinar naquele instante e perceber que todas as famílias, a dado momento das suas vidas, já receberam convidados inesperados. Sobretudo daqueles que não telefonam a avisar e que aparecem, normalmente, por volta das 20 horas.
Quanto ao cancro, é só mais um. E temos de encará-lo como qualquer outro intruso.
Batem à porta, entram, e o nosso desconforto não tem fim porque, àquela hora, claro que já tínhamos começado a jantar.
A nossa mão já está toda ela besuntada com a coxa de frango que agarrámos e os nossos lábios brilham, reluzentes – e não, não é gloss. Mesmo assim, é incontornável: temos de cumprimentar as visitas. Sem escolha, oferecemos praticamente o cotovelo para as cumprimentar, como fazem os mecânicos, e apesar de ser muito estranho, sempre é melhor do que oferecer uma mão que cola. Passado o momento do cumprimento, perguntamos, por obrigação, se a visitas querem juntar-se a nós.
Mentalmente, já estamos a contar quantos bocados de frango calham a cada um. Caraças. Não dá para mais ninguém. Rezamos um pai-nosso baixinho, para que não aceitem o convite forçado. Mas os desgraçados aceitam.
Aqui fazemos diferentes olhares uns aos outros – que gritam e expressam várias ordens de desenrascanço.
“Põe mais pratos!”, “tira a loiça suja!”, e a pior ordem, que vem diretamente dos olhos da mãe: “Não comas a tua parte porque depois não há frango para todos! Não jantas mais!”
Depois disto, sentamo-nos todos à mesa, claro que ficamos com a perna da mesa entre as pernas e comemos (menos aquele que doou a sua parte), muito incomodados, mas a fazer o que nos compete porque, afinal, estes imprevistos são coisas que acontecem. No final da noite, até conseguimos rir do sucedido e ficamos todos orgulhosos uns dos outros, por nos termos desenrascado tão bem.
As visitas inesperadas aparecem sempre quando temos tanto para fazer, quando não dá jeito nenhum, quando estamos a devorar, com as mãos, uma coxa de frango.
Com o cancro é a mesma coisa. O cancro aparece sempre no pior dia, na pior hora e quando estamos totalmente desprevenidos.
Mas sabem que mais? Fazemos a nossa parte, damos o nosso melhor e… desenrascamo-nos. Acabamos mesmo por descobrir que até nos safámos de tudo aquilo com muita pinta. Porque as famílias unidas são prós a ajudar-se em situações comprometedoras, como aquelas em que um cancro aparece, sem ser convidado e na hora do jantar.
P.S. Escrevo este texto agarrada a uma asa de galinha enquanto abocanho a minha canja. Por isso, por amor de Deus, não me apareçam em casa agora.
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