Por um lado, não interessa nada a história dos outros. Não importa o que viveram, como viveram, porque ninguém merece estar colado a um passado como se o presente não fosse importante e o futuro não existisse. As pessoas não são as circunstâncias da sua vida, mas são, sim, o que fazem com elas. Mas se olharmos duas vezes – as coisas mais importantes têm de ser olhadas mais do que uma vez –, percebemos que a bagagem dos outros pode acrescentar valor à nossa própria mala de viagem. A estrada que os outros já traçaram pode estimular a nossa e talvez, se nos lembrarmos do que ouvimos, escolhamos com mais consciência qual o atalho a seguir, ou deixemos finalmente o atalho e assumamos a estrada principal. Os pais, coitados, tentam durante uma vida inteira que aprendamos isto mesmo e dizem-nos, sem metáforas e com algum desespero na voz: “Aprende com os meus erros!” Mas não aprendemos. Porque precisamos de ter a certeza que aquilo é mesmo um erro, ou então porque somos simplesmente parvos – e também precisamos de ter a certeza disso. De qualquer forma, é bom saber que dos outros tiramos sempre alguma coisa para nós e isso acontece, normalmente, quando não estamos à espera.
E é com esta reflexão inicial, que vos conto, como a história do Fábio, assim como o presente do qual ele é feito hoje, acrescentou valor à minha vida, sem que eu estivesse a contar com isso.
Fui a Bragança, a convite do jovem escritor Fábio Serqueira (de apenas 23 anos), para a apresentação do seu romance “Mariana”, depois de ter escrito o seu prefácio:
“Miúda ignorante”, diz a minha amiga imaginária, que às vezes é uma parvalhona, mas diz coisas acertadas. “Achas que vais ajudar alguém ou dar alguma coisa? Achas que, por seres a convidada do autor, tens alguma coisa a acrescentar? Vais ser beliscada, minha querida! TU é que vais ser beliscada!” E como se uma abelha tivesse pousado no meu braço sem me aperceber, fui picada, beliscada e, claro, só me doeu depois. Só nos apercebemos do que nos aconteceu depois do vermelho e do ardor aparecerem, como se existisse uma cortina de tempo entre o beliscão e a sensação que advém dele. Demoramos a aperceber-nos das coisas, demoramos a perceber que fomos tocados.
Precisei de algumas horas para me aperceber de que o Fábio não usa desculpas. Que as poderia ter, que talvez, se as usasse, a sociedade até as validasse, mas ele simplesmente não as usa. Não porque não as tenha, mas porque não quer. O Fábio cresceu e viveu, desde os três anos de idade, em instituições, e hoje é escritor, músico e empreendedor, mas é sobretudo um criador. Um criador de oportunidades. Ele cria as suas próprias oportunidades.
Ao ouvi-lo senti o que já não sentia há algum tempo: um enorme peso de consciência, e esse foi o meu beliscão. Sim, mesmo sendo sobrevivente do cancro e dos quase atropelamentos dos tuk-tuks de Lisboa, tive a sensação óbvia de que às vezes, ando aqui a dormir, ou melhor, ando a dar cama ao medo. Deixo que ele se deite e levante comigo e adio vontades e sonhos porque estou ocupada a dar desculpas. Mesmo considerando-me uma fazedora e orgulhando-me de, às vezes, cumprir aquilo que me proponho, nem sempre o faço. Tenho vontades na gaveta e perdi a chave de propósito, só para não ter de me embrenhar no fundo de mim mesma e realizá- -las. Porque isso dá uma trabalhadeira dos diabos.
Apresentei o livro do Fábio. Apaixonei-me por Bragança. Conheci pessoas que me acolheram e me alimentaram a alma, e essencialmente saí de lá com uma decisão nas mãos:
Arrombar a gaveta e acabar com as desculpas, mesmo que também tenha direito a algumas. Afinal, sou uma sobrevivente dos quase atropelamentos diários dos tuk-tuks de Lisboa.
Nota:
Se quiserem os livros do Fábio, enviem um email para: fabioserqueira29@gmail.com
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