A circunstancialidade da decisão da Academia Sueca é sistémica, Churchill não é excepção mas a regra, e a questão-Dylan serve apenas para prová-lo. A circunstância de que é sintoma é o raquítico mal-estar da literatura no tempo corrente, o seu enfado com os meandros do capital, que a todo o momento parece feri-la de morte. Eis um dado, também ele, histórico, o qual no entanto na era digital se coloca com inaudita gravidade.
Trata-se de saber se a literatura tem ou não lugar no nosso tempo. Ora é sabido como a onda Nobel se tem gorado, na pós-modernidade, em água choca, sem efeitos primaciais na constituição de um cânone, incapaz de agir sobre a esfera do literário. Qualquer coisa semelhante ao efeito-Nobel para a recepção da obra de Saramago em Portugal não passa hoje de uma miragem. Perante a inocuidade do costumeiro hábito de atribuir prémios a “escritores” que o sistema já cauciona como tal, sistema esse que está ele próprio em atrofia (nas faculdades, nos índices de literacia literária, no volume e densidade da crítica, etc.), a academia sueca optou por aderir à era do espectáculo, colando-se ao dito “grande público”, demitindo-se por ora de uma eventual propensão pedagógica que alguns ousariam ainda atribuir-lhe.
Eis o cerne da questão: estes acusarão esta distinção de abandonar grosseiramente a oportunidade de fazer sobreviver ainda a literatura, de afirmar um ilhéu orgulhosamente só no caos iminente em que o universo se lança. Outros, com uma dose selvagem de ignorância, tenderão a celebrar a “ousadia” do prémio, por se não circunscrever ao literário, como se a história das vanguardas não tivesse já mais de um século, como se a erradicação da condição autotélica da literatura não tivesse sido já aventada há largo tempo, e também ela engavetada, absorvida pelo espectáculo.
Parece pois evidente que a questão-Dylan é sintoma da própria condição agónica da literatura, a que nem uns nem outros parecem conseguir dar resposta. Os primeiros perfilham o carácter conservador do literário, e terão razão se atendermos à sua condição genética, à sua moderna vocação contra-moderna. A literatura, é certo, sempre se afirmou ao arrepio da história, condenando os costumes, dinamitando o senso-comum, e aí residiu sempre a sua força, movida pelo dínamo de um elitismo (no mínimo intelectual, mas quase sempre sócio-económico), que hoje ameaça, como era fácil de prever, aniquilá-la, pois a "aura" iluminista do poeta como "líder espiritual dos povos" foi há muito deposta e enterrada. Sendo o Nobel um aparato histórico, tenderão estes a acusá-lo de perder os próprios escritores, na defesa de uma posição autonómica da literatura em face de outras formas de expressão. Esta posição, é sabido, não tem dado grandes resultados, como sabemos, pois a meia-dúzia de literatos autodeterminados “sobreviventes” não tem hoje qualquer impacto social, e tem nojo a tê-lo, condenando a literatura a um fenómeno de trincheiras.
Os segundos, ignorando a final incapacidade das vanguardas, engolidas pelo capital e pelas ditaduras do capital, incapazes de atender à natureza conservadora da literatura, são os mesmos que celebram o fogo-fátuo, o chocho mais-do-mesmo da obra-em-acção, o fim das fronteiras, a erradicação do cânone, em suma, o apocalipse da era crítica – a morte da modernidade artística que é a própria crítica da modernidade civilizacional, portanto. Eliminando a poética, subjugam tudo ao sem-sentido em que a literatura contemporânea se acha mergulhada. São os promotores do fim da narrativa, do fim da história literária, esquecendo que sem narrativa não há finalidade (ou vice-versa), e que sem fim não há meios. Contra a literatura de trincheira postulam a literatura fluidificada, evaporada, de preferência o próprio fim da literatura.
Nesta perspectiva, a questão-Dylan não traz dividendos a ninguém: nem aos primeiros, que continuarão indignados pelo desprezo da Instituição em face da “verdadeira literatura”, nem aos segundos, para os quais a Instituição é uma não-existência.
Mas este prémio não interessa sequer à Academia: ciente de que, nos tempos actuais, a expressão palavrosa do literário é residual, feita de brutal pobreza (e esse é, de algum modo, o seu próprio postulado perante o fogo-de-artifício do reino da imagem), procuram dar-lhe peso colando-a à música popular, pedinchando desesperadamente o afecto de um público novo. Eis o avesso de uma “política cultural”: a instituição não forma um público, não o conquista e nem sequer o importa, mas exporta ela própria o produto que dá sentido à sua existência. A Academia forceja um peso para o literário através da dimensão mediática que só outras ferramentas expressivas poderiam acarretar. E, como tal, a Academia cauciona assim o mal-estar da literatura, colocando-se do lado dos segundos, tão anacronicamente quanto aqueles.
Por último, e este é o ponto mais evidente, o Nobel muito menos interessa a Dylan: convertido à revelia da sua vontade morta em peão de combate da Academia, ganha apenas o leve desprezo dos primeiros, o arroto-uau satisfeito dos segundos que a tudo patetamente anexam, a mesma devoção e afecto dos que já o amavam, com ou sem Nobel.