Sócrates e Farinho fizeram retiro no Algarve para escrever o livro

Sócrates e Farinho fizeram retiro no Algarve para escrever o livro


O livro Carisma, a lançar já em outubro, resulta da colaboração entre Sócrates e um professor catedrático pago através de uma conta bancária de Carlos Santos Silva.


As contas bancárias de Domingos Farinho – o professor que alegadamente terá escrito o primeiro livro de José Sócrates, A Confiança no Mundo – estão a ser investigadas pelo Ministério Público. 

O catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, com o mestrado em Ciências Jurídico-Políticas e várias obras publicadas, foi notificado em julho passado na qualidade de testemunha. Mas, questionado pelo SOL sobre o seu atual estatuto no processo, Farinho foi parco em palavras, não adiantando se terá ou não sido constituído arguido: «Já tinha dito que não vou falar mais sobre esse assunto». Também as contas bancárias da sua mulher, Jane Kirkby, estão sob escrutínio por parte dos investigadores.

Para o MP, mais do que a autoria do livro, o que está em jogo é saber de que forma foi paga a colaboração do académico e a origem do dinheiro. As autoridades suspeitam que os valores recebidos por Domingos Farinho e a mulher foram pagos com montantes oriundos de uma fortuna presumivelmente acumulada por José Sócrates que tem como ‘hospedeiro’ bancário o empresário e seu amigo de juventude Carlos Santos Silva. E tanto Domingos Farinho como Jane Kirkby, também ouvida como testemunha, receberam avenças de empresas de Santos Silva. Foi o próprio professor, aliás, quem anteriormente confirmou ao SOL ter auferido pagamentos por trabalho da esfera intelectual que manteve com José Sócrates.

Honorários pagos por Santos Silva

A existência dos honorários foi detetada após uma busca desencadeada a várias empresas de Santos Silva, onde o MP descobriu o print de um email de 23 dezembro de 2012, trocado entre o catedrático e Rui Mão de Ferro, administrador de uma dessas sociedades, a Proengel 2, relativo à preparação de um contrato e à realização dos pagamentos entre esta sociedade e Domingos Farinho.

Na altura, o professor reconheceu ter recebido os pagamentos, argumentando que esse trabalho se ficou apenas pela sugestão de alguns títulos para a bibliografia e a revisão da tese que Sócrates apresentou quando cursava filosofia política em Paris, no Instituto de Estudos Políticos (Sciences Po), mas negou a autoria do livro. 

Quanto ao montante que recebeu de forma regular durante um ano, disse ter sido o mesmo acertado entre ele e Sócrates, e não ser «do foro público». No entanto, esclareceu que não era o ex-primeiro-ministro quem lhe pagava: «Não me lembro do nome da empresa, mas tratei de tudo sempre com Rui Mão de Ferro». Recorde-se que, publicamente, o antigo líder socialista referiu-se ao livro em causa como sendo a versão traduzida da sua tese de mestrado na escola de Sciences Po.

O MP, aliás, pediu o levantamento do sigilo bancário da conta conjunta do casal Farinho no Banco Santander Totta, num período mais vasto do que o da elaboração da tese de Sócrates: de janeiro de 2011, quando o então líder socialista ainda permanecia ao leme do país, à presente data.

‘Muleta intelectual’ de Sócrates

As suspeitas são várias. Ainda no final de novembro de 2012, quando Sócrates se encontrava em Paris a preparar a mémoire de mestrado em Ciência Política, na qual o académico também assumiu ter colaborado, Farinho e a mulher viajavam ao seu encontro para passarem o fim de semana na capital francesa. 

A deslocação, paga por Santos Silva através da agência de viagens Raso/Geostar, deu-se três semanas depois do email trocado com Mão de Ferro para ultimar o contrato que Farinho corroborou ter concretizado para se tornar numa espécie de ‘muleta intelectual’ de Sócrates.

Outro dos indícios considerados relevantes para a investigação prende-se com uma revelação recente. No fim de semana passado, o ex-líder socialista, num regresso intempestivo à vida política, anunciou que estava para vir à estampa, neste outubro, um novo livro assinado por ele – o qual, segundo adiantou à SIC, será uma «obra dedicada à teoria política sobre o carisma». 

Ora este ensaio, que também conta com a participação de Domingos Farinho, já estava em andamento antes de Sócrates ter sido detido. 

Segundo os investigadores, quando Sócrates se preparava para fazer o doutoramento, Farinho tinha a incumbência de o ajudar nessa nova etapa – que culminaria em mais um livro, para o qual já havia título: Carisma.

Em novembro de 2013, Sócrates pretendeu solidificar o compromisso já estabelecido entre ambos numa conversa que mantiveram durante uma viagem de carro: «Então, avançamos?», perguntou Sócrates. O outro confirmou. Mas, por razões fiscais, sugeriu que o novo contrato ficasse em nome da mulher, envolvendo assim Jane no assunto, o que motivou a sua recente audição como testemunha. E Farinho, que andava sempre um passo à frente do antigo líder socialista, confidenciou-lhe que já andava a consultar bibliografia sobre o tema. As conversas sobre o tema ficaram registadas.

Convite para os EUA

Entretanto, em maio, Sócrates admitira a possibilidade de ir estudar para Nova Iorque, na Universidade de Columbia. O desafio chegou-lhe através do seu antigo ministro da Economia, Manuel Pinho, que lecionava naquela instituição e que, em simultâneo, lhe arranjou forma de ser convidado como professor visitante. 

Foi a própria Universidade de Columbia que enviou a Sócrates um email a confirmar a intenção. Farinho, uma espécie de alter ego académico de Sócrates, foi chamado de imediato a assumir a responsabilidade, dadas as dificuldades do ex-líder do PS no domínio da língua inglesa: «Podes-me endossar a resposta, porque escreves melhor do que eu. Agradece o convite e diz-lhes para não se preocuparem com as questões do alojamento e pagamento. Não são importantes para mim».

O segundo livro de Sócrates estava, no entanto, no maior dos segredos. Apenas um jornalista ficou a conhecê-lo. José Manuel Portugal, à época diretor de Informação da RTP, convidara-o para um debate na estação, tendo recebido escusa com uma boa explicação: «Eh pá, eu estou a pensar retirar-me uns três meses para escrever mais um livro, por favor não comente com ninguém».

Mas, em maio de 2014, Domingos Farinho ainda estava quase na estaca zero, e disso deu conta a Sócrates: «Tenho-me dedicado às leituras mais do que à escrita, tirei notas de livros e já tenho cinco páginas escritas». Sócrates, por seu lado, estava com pressa e propôs umas férias. Pretendia alugar um apartamento no luxuoso Pine Cliffs de Albufeira para os dois se concentrarem: «Temos de fazer um retiro de dois ou três meses». Ao que o outro não se opôs: «Era importante, mais por ti, mas a mim também me sabia bem».

Entre os amigos mais próximos de Sócrates, poucos sabiam destes planos. Apenas o seu motorista, João Perna, que levava e trazia material trocado entre o patrão e o professor catedrático, costumava propagar quando saiu A Confiança no Mundo: «Ele escreveu tanto o livro como eu».