Avante! Comício para uns, concerto para outros

Avante! Comício para uns, concerto para outros


Ainda há cartazes de Fidel e discursos de Cunhal à venda. Mas neste Avante! a Telepizza já rivaliza com a barraca dos kebabs palestianos.


Uma orquestra de música clássica toca para a multidão no relvado. Há famílias em cadeiras de plástico, jovens de cigarro na mão e encostados a um poste, carrinhos de bebé, garrafas de vinho, troncos nus. Ao som da Carvalhesa – o hino da CDU – esvaem-se as diferenças e todos dançam. É a quadragésima edição da Festa do Avante, onde gerações e música diversa se juntam no maior evento anual do Partido Comunista Português. A celebração dos seus quarenta anos anda de braço dado com os quarenta anos da Constituição da República. Em jeito de festejo, o PCP inaugurou o alargamento da Quinta da Atalaia para o Cabo, ficando agora a festa com um espaço com quase trinta hectares. 

Nem todos ficaram satisfeitos com o alargamento. António Ferreira, militante de 77 anos, veio a todas as edições – Jamor, Ajuda, Loures – e considera que ficou tudo “mais desorganizado”. Vem de propósito para a Festa e acampou até deixar de ter saúde para dormir na tenda. Membro do partido há mais de duas décadas, tem netos e bisnetos que costumam vir ao Avante. “São revolucionários por nascença!”, afirma, orgulhoso. A sua maior ambição é que eles “tenham emprego”. “Tenho medo que não tenham vida digna, tenho mesmo”.

Alguns jovens de calções carregam bandeiras da foice e do martelo e os quiosques que representam as várias regiões portuguesas exibem mensagens ideológicas, no entanto, não há uma tentativa de endoutrinar os visitantes. Os que estão interessados exclusivamente na música não recebem lições de política. Os interessados exclusivamente em comes e bebes também não.

“Nos anos 90, quando era miúdo, tínhamos de esconder o dinheiro nas meias”, conta um rapaz que se lembra de Otávio Teixeira, ex-líder parlamentar, lhe pagar o bilhete de camioneta para regressar a casa depois de ser assaltado na festa. O contexto estará diferente, o espaço é agora exclusivo do PCP, que pode investir na sua modernização ao assumir a quinta como localização definitiva do evento.  

O deputado João Oliveira, acompanhado pela mãe, contou ao i que vem “desde bebé” e que “a festa é o maior ponto de contacto com as gerações mais novas”. 

Miguel Tiago, outro parlamentar comunista, revelou: “A primeira vez que vim sozinho tinha catorze anos”. Antes, “vinha com os pais, até deixarem de ser militantes com a queda do Muro”. Depois, “como muita gente”, regressaram. “Houve uma grande desilusão nessa época, com coisas que correram mal”. Sobre como é que se “renovou a chama”, Miguel Tiago afirma que “foi este grande partido” o responsável.

Na cantina reservada aos trabalhadores da festa, todos voluntários, vê-se uma faixa em nome da luta “anti-imperialista”. Uns metros mais adiante, depois da novidade da roda gigante, os festivaleiros fazem fila na banquinha da Telepizza, de cartão multibanco em riste. O Avante tem política de promoção do uso de cartões multibanco, por ser “mais seguro”, sendo possível pagar qualquer produto – apenas uma cerveja, por exemplo – com este método eletrónico. 

A veia internacionalista da ideologia está bem vigente. Membros da Esquerda Unida, vindos das Astúrias, dizem vir todos os anos pela comida, pela música, pelas pessoas “muito queridas” e pelos discursos. “Vimos para o pacote completo”, sorriem na maior fila para jantar do recinto, junto aos kekabs dos comunistas palestinianos. Retratos de José Eduardo dos Santos pendem no pavilhão do MPLA e imagens de Fidel Castro ilustram o pavilhão cubano.  

Há também uma dinâmica dirigista. A hora do recolher, quando megafones informam repetidamente que os “amigos e camaradas” devem abandonar o recinto, os patrulhas fardados com lanternas enormes presas à cintura, fazendo de bastões mesmo que haja uma média de um candeeiro por cada cinco metros quadrados e a sua tarefa se resuma a garantir que os desmaiados no chão estão só ébrios. 

Nas feiras do livro e do disco, que também albergam debates, vendem-se publicações com discursos transcritos de Álvaro Cunhal. Nestas tendas, lado a lado, há uma porta para sair e uma porta para entrar, com vários visitantes reencaminhados de uma para a outra, algo baralhados. Emana uma ordem ortodoxa na gestão da festa, embora o conservadorismo do partido no que toca a drogas leves pareça desaparecer. 

Os artistas entram na onda contestatária. Carlão, ex-vocalista dos Da Weasel, dedicou uma música de protesto a Paulo Portas, Carlos Costa e Ricardo Salgado. 

Jorge Cruz, membro dos Diabo na Cruz, lembrou em entrevista ao i: “Já viemos aqui quatro vezes e temos uma relação forte com este público. Fazemos músicas de perseverança muitas vezes relacionadas com ‘a luta’”. O artista, claramente emocionado com a química conseguida entre a banda e os trinta mil espetadores, explica que fizeram “por merecer a confiança da festa”. “Eu tenho muita dificuldade em explicar o que sinto, foi algo especial… fez sentido, sabes? Já fizemos duzentos concertos, este foi talvez o momento mais especial da banda”.

Questionado sobre se regressariam para o ano, Jorge Cruz rematou: “Por mim não dava mais nenhum concerto, não preciso, nem a solo nem a nada. Estou bem assim, foi especial”. 

Em conversa antes do espetáculo, a fadista Ana Moura também não escondeu o contentamento pelo convite para atuar na Atalaia. “É um ambiente especial, a maneira como o público se entusiasma. Estou muito feliz por vir, quando estávamos a fazer o soundcheck, as pessoas aproximaram-se… é especial”.

O Avante termina com um domingo de comício, encerrado com o discurso de Jerónimo Sousa. O secretário-geral saudou as “delegações internacionais e os laços de amizade e solidariedade” que mostram o PCP como um “partido patriótico e internacionalista”.

“Sabemos que estamos aquém do necessário”, admitiu Jerónimo, elaborando de seguida uma lista do conseguido com “esta relação de forças diferente”, como o início do processo pela gratuidade dos manuais escolares, as 35 horas semanais na Função Pública e a redução do IVA da restauração. Jerónimo Sousa sublinhou, no entanto, “a independência do partido” em relação ao Partido Socialista. “Não é um governo de esquerda, é um governo minoritário do PS”.

O líder comunista deixou ainda um agradecimento aos bombeiros portugueses e salientou a necessidade de “outra política agrícola” para prevenir os incêndios.  

As habituais metáforas populares de Jerónimo também tiveram lugar no seu discurso. A “direita” foi comparada “à senhora das bolas de Berlim”, sendo seguidamente apupada quando referida como “CDS e PSD”. 

O secretário-geral do PCP lembrou que há novo aniversário a celebrar em 2017. “Para o ano, comemoramos o centenário da revolução de outubro”, recordou Jerónimo para regozijo da audiência. Um século depois, Lenine continua o protagonista à esquerda.