Dedicação à doença? Há quem a tenha


Há pessoas para quem seria uma violência se lhes dissessem de repente que estavam tão bem de saúde  que já não precisavam de ir ao médico. Essas pessoas tomam conta da doença, literalmente


Há uns dias, conheci uma miúda Careca Power cheia de força, mas, ao mesmo tempo, frágil – a junção de meninez e de coragem imposta pela vida que a tem desafiado a crescer rápido de mais, com resposta para tudo e de humor mordaz. Gostei logo dela.

Ao encontrarmo-nos pessoalmente, ainda só conversávamos na internet, sentimos que éramos duas amigas que apenas já não se viam há muito tempo e não duas pessoas que se sentavam juntas, a beber café, pela primeira vez. Com a sua naturalidade encantadora, contou-me que a médica que a seguia tinha-a reprimido por ela nunca fazer perguntas sobre a doença e mostrar-se desinteressada pelo que lhe estava a acontecer. Não entendia como é que a sua paciente não queria saber mais informações sobre o linfoma, como é que comunicava friamente sobre aquilo que lhe diziam, como é que não interrogava e pedia explicações! “Tu tens de querer saber!”, disse-lhe.

A minha nova amiga Careca Power contou-me que acabou por concordar com a médica e assumiu nunca se ter envolvido na sua própria doença. Por isso, considerou fazer uma pergunta: “Tem razão, doutora. Vou fazer-lhe uma pergunta: posso ir de férias?”.

Dei uma gargalhada enorme, daquelas que mandamos a cabeça para trás e quase partimos o pescoço e imaginei a médica a benzer-se e a perguntar a Deus o que teria feito de mal nesta vida para merecer uma paciente tão rebelde, e não pude deixar de adorar a história. Independentemente de defender (com unhas e dentes!) que devemos ser pacientes pró-ativos, que temos de fazer a nossa parte, que existe uma relação médico-doente de confiança a construir, que nós também somos fundamentais na nossa cura, compreendo perfeitamente esta postura. 

A C. não se quer envolver, não quer dar-lhe demasiado atenção, como se a doença não fizesse parte dela e é assim que o demonstra – não fazendo perguntas. Uns acham isto apenas revolta e indiferença, eu acho que esta atitude tem mais de sublime e sabedoria do que de insensatez.

Depois de ter falado novamente com a C., reflito (estou neste momento no Alentejo e aqui há tempo para apreciar e pensar) sobre a violência que seria para algumas pessoas se lhes fosse dito que estavam tão bem de saúde que não precisavam mais de ir ao médico. Se lhes fosse dito que já estavam bem, que já não “eram” doentes. Se lhes fosse dito que já não eram aquilo que são. 

Conheço algumas destas pessoas. Perguntam-me sempre como está o meu cancro, como se me perguntassem, “como é que está o teu pai?”, como se fosse uma segunda pessoa. E eu digo sempre que já não tenho cancro há muitos anos e acho que elas lamentam porque assim ficamos sem assunto. 

Se o médico lhes desse “alta” para sempre, o que fariam às quinta-feira? A quinta-feira, o dia de ir ao médico, é tão sagrada como o domingo, que é o dia de ir à missa! A conversa do costume com a colega que lá vai mostrar as análises, o momento de risota com a farmacêutica, que sabe como ninguém quantas pensões ali são gastas; os conselhos trocados com o médico, que às vezes também é padre e ouve sobre as dores e os pecados; o pedinchar aqui, o reclamar acolá, porque o medicamento está a atacar-lhe o estômago e talvez precisasse de outro para o acalmar. O ombro que dói e ela que já não tem posição para dormir, o marido que está cada vez com mais azia e com pior feitio, “e se o doutor lhe passasse um exame, eu ficaria mais descansada” (e vingada, se fosse sem anestesia). A leitura da revista da semana, que a rececionista compra sempre para entreter a clientela; o café bebido depois da consulta e a consulta dada agora à dona do café, que quer saber “tintim por tintim” o que lhe disse o médico. 

E se o médico lhes desse “alta” para sempre, o que fariam à quinta-feira? Não, não, não pode ser, “porque sou doente há mais de vinte anos!” – como se fosse um posto, como se fosse um clube, como se fosse parte do nome, porque já me chamo doente há mais de vinte anos”, porque já me dedico a isto há uma vida e até já nem trabalho porque o meu trabalho agora é este. 

Há gente que se dedica verdadeiramente à doença e não, não é a doença que toma conta deles, são eles que tomam conta da doença: embalam-na, tratam dela, passeiam-na e falam dela como se fosse da casa, como se fosse um filho, com um orgulho e estandarte, com obsessão e desculpa para tudo – “porque eu já sou doente há mais de vinte anos!”. E deixar de o ser significaria apenas deixar de saber o que se é.

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Escreve à quinta-feira


Dedicação à doença? Há quem a tenha


Há pessoas para quem seria uma violência se lhes dissessem de repente que estavam tão bem de saúde  que já não precisavam de ir ao médico. Essas pessoas tomam conta da doença, literalmente


Há uns dias, conheci uma miúda Careca Power cheia de força, mas, ao mesmo tempo, frágil – a junção de meninez e de coragem imposta pela vida que a tem desafiado a crescer rápido de mais, com resposta para tudo e de humor mordaz. Gostei logo dela.

Ao encontrarmo-nos pessoalmente, ainda só conversávamos na internet, sentimos que éramos duas amigas que apenas já não se viam há muito tempo e não duas pessoas que se sentavam juntas, a beber café, pela primeira vez. Com a sua naturalidade encantadora, contou-me que a médica que a seguia tinha-a reprimido por ela nunca fazer perguntas sobre a doença e mostrar-se desinteressada pelo que lhe estava a acontecer. Não entendia como é que a sua paciente não queria saber mais informações sobre o linfoma, como é que comunicava friamente sobre aquilo que lhe diziam, como é que não interrogava e pedia explicações! “Tu tens de querer saber!”, disse-lhe.

A minha nova amiga Careca Power contou-me que acabou por concordar com a médica e assumiu nunca se ter envolvido na sua própria doença. Por isso, considerou fazer uma pergunta: “Tem razão, doutora. Vou fazer-lhe uma pergunta: posso ir de férias?”.

Dei uma gargalhada enorme, daquelas que mandamos a cabeça para trás e quase partimos o pescoço e imaginei a médica a benzer-se e a perguntar a Deus o que teria feito de mal nesta vida para merecer uma paciente tão rebelde, e não pude deixar de adorar a história. Independentemente de defender (com unhas e dentes!) que devemos ser pacientes pró-ativos, que temos de fazer a nossa parte, que existe uma relação médico-doente de confiança a construir, que nós também somos fundamentais na nossa cura, compreendo perfeitamente esta postura. 

A C. não se quer envolver, não quer dar-lhe demasiado atenção, como se a doença não fizesse parte dela e é assim que o demonstra – não fazendo perguntas. Uns acham isto apenas revolta e indiferença, eu acho que esta atitude tem mais de sublime e sabedoria do que de insensatez.

Depois de ter falado novamente com a C., reflito (estou neste momento no Alentejo e aqui há tempo para apreciar e pensar) sobre a violência que seria para algumas pessoas se lhes fosse dito que estavam tão bem de saúde que não precisavam mais de ir ao médico. Se lhes fosse dito que já estavam bem, que já não “eram” doentes. Se lhes fosse dito que já não eram aquilo que são. 

Conheço algumas destas pessoas. Perguntam-me sempre como está o meu cancro, como se me perguntassem, “como é que está o teu pai?”, como se fosse uma segunda pessoa. E eu digo sempre que já não tenho cancro há muitos anos e acho que elas lamentam porque assim ficamos sem assunto. 

Se o médico lhes desse “alta” para sempre, o que fariam às quinta-feira? A quinta-feira, o dia de ir ao médico, é tão sagrada como o domingo, que é o dia de ir à missa! A conversa do costume com a colega que lá vai mostrar as análises, o momento de risota com a farmacêutica, que sabe como ninguém quantas pensões ali são gastas; os conselhos trocados com o médico, que às vezes também é padre e ouve sobre as dores e os pecados; o pedinchar aqui, o reclamar acolá, porque o medicamento está a atacar-lhe o estômago e talvez precisasse de outro para o acalmar. O ombro que dói e ela que já não tem posição para dormir, o marido que está cada vez com mais azia e com pior feitio, “e se o doutor lhe passasse um exame, eu ficaria mais descansada” (e vingada, se fosse sem anestesia). A leitura da revista da semana, que a rececionista compra sempre para entreter a clientela; o café bebido depois da consulta e a consulta dada agora à dona do café, que quer saber “tintim por tintim” o que lhe disse o médico. 

E se o médico lhes desse “alta” para sempre, o que fariam à quinta-feira? Não, não, não pode ser, “porque sou doente há mais de vinte anos!” – como se fosse um posto, como se fosse um clube, como se fosse parte do nome, porque já me chamo doente há mais de vinte anos”, porque já me dedico a isto há uma vida e até já nem trabalho porque o meu trabalho agora é este. 

Há gente que se dedica verdadeiramente à doença e não, não é a doença que toma conta deles, são eles que tomam conta da doença: embalam-na, tratam dela, passeiam-na e falam dela como se fosse da casa, como se fosse um filho, com um orgulho e estandarte, com obsessão e desculpa para tudo – “porque eu já sou doente há mais de vinte anos!”. E deixar de o ser significaria apenas deixar de saber o que se é.

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